“A praxe ocupa muito tempo e eu estou aqui para ir às aulas”
Na Agrária de Santarém há muitos novos estudantes que se recusam a ser praxados. Há 15 anos, cenas pouco edificantes motivaram um processo em tribunal que resultou na condenação de alguns estudantes veteranos. O caso foi notícia de âmbito nacional e as praxes chegaram a ser proibidas. A dureza das provas pode ter abrandado mas a fama continua a intimidar muitos novos alunos. Apesar de haver também muitos que se sujeitam a elas e até gostam.
Há alguns anos a Escola Superior Agrária de Santarém (ESAS) foi notícia nacional devido às praxes violentas que aí eram praticadas sobre os novos alunos, vulgarmente tratados por caloiros. A queixa de uma aluna em tribunal motivou mesmo a condenação de alguns estudantes veteranos (ver caixa). Actualmente, não há relatos de que se chegue a esses extremos, mas a fama da dureza das praxes na Agrária continua a intimidar alguns caloiros, que optam por se declarar anti-praxe. Isso faz com que se livrem de determinados rituais de iniciação, como o corte do cabelo aos rapazes, por exemplo, mas também leva a que passem a ser olhados como párias por quem leva a sério as chamadas tradições académicas, mesmo que aos olhos de muitos possam parecer anacrónicas, exageradas e descabidas.
Ana, Catarina e Andreia, residentes em Almeirim e Santarém, declararam-se anti-praxe logo no primeiro dia. Aliás, é muito pequena a percentagem de raparigas que se tem sujeitado às praxes exigentes da Agrária. À data desta entrevista apenas oito raparigas tinham aceitado sujeitar-se a esse ritual académico. “A praxe ocupa muito tempo e eu estou aqui para ir às aulas e estudar”, afirma Ana, estudante do primeiro ano do Curso Técnico Superior Profissional (TeSP) de Análises Laboratoriais.
Além disso, continua Ana, “aqui nesta escola a maneira como os veteranos falam é diferente das outras escolas superiores do Politécnico de Santarém. Aqui partem muito para a humilhação. Basta ver que no primeiro dia eram uns cem caloiros a fazer fila à frente da escola e agora são uns 30 porque eles vão desistindo”.
As estudantes admitem que ainda ficaram na dúvida se participavam nas praxes mas, depois de ouvirem o que faziam, decidiram não o fazer. “Como não pertencemos ao grupo dos praxados não temos muita informação de como são as praxes. O pouco que sabemos é o que ouvimos falar. Sabemos que eles abusam um bocadinho. Cortam o cabelo aos caloiros, embebedam-nos e vão para casa dos veteranos fazer o jantar, fazer a cama, lavar a loiça e limpar a casa”. Admitem que o pior é mesmo a humilhação a que estão sujeitos, mas as coisas já não serão como há 15 anos, quando despejar bosta de animais por cima da cabeça de caloiros era uma das provações por que passavam os caloiros.
“No nosso grupo somos 12 anti-praxe. Só dois ou três é que vão para as praxes. O resto não liga a isso e, talvez por isso, não nos sentimos discriminados também porque temos o nosso próprio grupo. Se estivéssemos sozinhos talvez fosse diferente”, admitem. E acrescentam: “Não conhecemos o Código de Praxes nem sabemos se podemos vestir o traje académico ou não mas também é algo que não nos interessa”.
As penas sofridas em nome da integração
Na Escola Agrária de Santarém há algum secretismo em torno das praxes académicas. O MIRANTE pediu à Comissão de Praxes da ESAS para assistir a alguns momentos mas tal foi-nos recusado. Apenas praxantes e praxados podem ter acesso ao barracão onde são realizadas as actividades. E os caloiros que integram as praxes académicas também não estão autorizados a contar pormenores acerca do que lá se passa.
Apesar das dificuldades, conseguimos falar com alguns caloiros e verificamos que até há quem goste das praxes, como é o caso de Leandro Ezequiel, 22 anos, natural de Alcobaça. Afirma que as praxes “não são assim tão más”, sendo da opinião que quem desiste fá-lo “porque não tem calo para aguentar”. É dos poucos caloiros que ainda conserva o seu cabelo tal como quando entrou para a Escola Agrária, tendo escapado ao corte, explica, porque o ‘dux’ gostou dele. “Apenas me obrigou a usar bigode”, conta. Admite que algumas praxes até podem parecer duras mas a “maior parte das vezes é mais fama que outra coisa”.
Alguns caloiros crêem que o esforço exigido pelas praxes é compensador, pois vai permitir criar amizades e usar o traje académico dignamente. “Decidi fazer praxe pela integração académica e pelo espírito, porque posso estar a passar uma fase menos boa agora, mas acredito que depois vai compensar”, afirma Patrícia Germano, 23 anos, natural da Lapa. A nova aluna admite que a sua motivação também está ligada ao uso do traje, explicando que “podemos trajar mesmo que não sejamos praxados, mas não será muito significativo, não vai ser merecido”.
Apesar de estar a gostar da experiência, admite a dureza das praxes. Patrícia conta que o que lhe está a custar mais é a praxe psicológica - “quando nos tentam levar ao limite, afirmando que não vamos conseguir aguentar”. Em relação à praxe física, explica que os caloiros têm de estar muitas horas de joelhos. “Temos de fazer vários exercícios complicados, temos de estar constantemente a encher, mas a parte psicológica é realmente a pior, a forma como falam connosco...”.
Quando questionada acerca da fama da ESAS e episódios que tenham originado queixas, Patrícia afirma que “este ano ainda não houve nada significativo, mas tenho conhecimento que há dois anos aconteceram episódios desses, em que mandaram um caloiro colocar bosta de vaca na cara”. Não receia que tal lhe possa vir a acontecer, pois acredita que tem o direito de recusar esse tipo de praxe.
Hugo Fonseca, 18 anos, veio da Nazaré já com o desejo de fazer parte dessa experiência académica. Considera que se trata da melhor forma de se conseguir integrar na ESAS e junto dos outros colegas. Em relação às praxes, “temos de cumprir com regras”, começou por declarar o jovem. Apesar de não poder comentar as actividades realizadas, é visível a sua cabeça rapada, um ritual pelo qual os rapazes que entram para a ESAS têm de passar. “Tinha uma ideia que isto me poderia acontecer, mas quando me disseram que iam cortá-lo disse logo que sim”.
Director da Agrária a favor das praxes “bem conduzidas e apelativas”
O director da Escola Superior Agrária de Santarém (ESAS), José Mira Potes, não tem dúvidas: “As praxes bem conduzidas e apelativas são um meio bastante eficaz de integrar os novos alunos no espírito académico e na ESAS”. Além disso, considera não haver excesso de tempo gasto com actividades de integração e muito menos com “rituais de integração”, já que as actividades de recepção aos novos alunos são devidamente planeadas, programadas e discutidas com a direcção da ESAS.
José Mira Potes confessa que todos os anos se reúne a Associação de Estudantes e Comissão de Praxes e a Direcção da ESAS, para que “prevaleça o bom senso de parte a parte e as praxes contribuam para o espírito salutar da Agrária de Santarém e não o oposto, como algumas vezes se verificou”. Ainda assim, há sempre queixas como já houve este ano lectivo por parte de um encarregado de educação que, adianta, “foi devidamente inquirida e respondida ao queixoso, que aceitou e agradeceu o esclarecimento”.
Em relação ao uso do traje académico, o director esclarece que, “por regulamento, só deve usar o traje quem for praxado e que tal já foi colocado à discussão nos devidos órgãos, para se encontrar uma solução para o assunto”.
“Se eu mandasse todos os dias os caloiros mexiam em bosta”
Presidente da associação de estudantes comenta as praxes académicas na Escola Agrária de Santarém
Ivan Ferreira, presidente da Associação de Estudantes da Escola Superior Agrária de Santarém, admite a existência de uma praxe dura na ESAS. Defende que os novos alunos passem por esse processo para que no fim se possam considerar ‘charruas’, acrescentando que não é qualquer um que merece essa denominação, tal como não deve ser qualquer um a ter a honra de vestir o traje académico da Agrária. E embora os alunos que não integrem as praxes académicas também o possam usar, confessa que os ‘charruas’ não vêem essa situação com bons olhos.
Ivan não compreende como é que um caloiro pode ficar ofendido por ter de mexer em bosta ou nos animais, visto que é algo a que o seu curso obriga. “Vão ter de o fazer a vida inteira, pois é a vida que escolheram”, diz acreditando que a praxe pela qual passam os futuros ‘charruas’ é fundamental para que cresçam enquanto pessoas, ajudando-os a prepararem-se para o futuro. “Se eu mandasse, todos os dias os caloiros mexiam em bosta. Tenho uma pena enorme de o não ter feito todos os dias quando fui caloiro”.
O presidente da associação de estudantes da ESAS diz estar ciente da má fama que a Escola Agrária possui no que toca a praxes, mas diz que as pessoas não podem esperar que as praxes realizadas ali sejam iguais às do resto do país. Admite ser verdade que cortam o cabelo a todos os rapazes que entram para a Agrária pois faz parte da tradição das suas praxes, sendo vista como uma falta de respeito a recusa dos alunos em fazê-lo.
Esclarece ainda que a dureza das praxes é muito subjectiva, uma vez que nem todos possuem a mesma resistência física e psicológica. Além disso, o aluno da Agrária tem o direito de expressar a sua vontade em não participar nelas. E caso haja abusos por parte de algum dos praxantes existem sanções para essas situações. “O exemplo vem de cima nesta escola, os mais velhos têm a obrigação de dar o exemplo aos mais novos no decorrer da praxe”.
É grande a especulação que envolve as praxes da ESAS e só mesmo quem as aceita pode dizer que sabe do que fala. “Quem quiser saber como é a nossa praxe tem de vir para a Agrária ser praxado”, diz Ivan Ferreira.
Estudantes da Escola Agrária condenados a multas por praxes violentas
Factos ocorreram há quinze anos mas a sentença só foi produzida em 2008
No dia 23 de Maio de 2008, O MIRANTE relatava que os sete elementos da comissão de praxes da Escola Superior Agrária de Santarém foram condenados a penas de multa entre os 1.600 euros e os 640 euros. O Tribunal de Santarém considerou seis dos arguidos culpados da prática do crime de ofensa à integridade física qualificada e outro do crime de coacção ao submeterem a caloira Ana Santos a ser praxada com excrementos em várias partes do corpo.
Os factos ocorreram em 8 de Outubro de 2002 quando a estudante foi levada juntamente com os colegas do primeiro ano para a Quinta do Bonito, propriedade da escola, com o objectivo de apanharem nozes. A dada altura a queixosa atendeu o telemóvel, o que tinha sido proibido pelos veteranos. E em consequência disso os arguidos combinaram aplicar-lhe um castigo pedindo a dois caloiros que besuntassem Ana Santos com bosta de porco.
No mesmo dia, na Escola Agrária, o sétimo arguido ordenou que a caloira fizesse o pino e mergulhasse a cabeça dentro de um penico cheio com excrementos de vaca. Após a leitura da sentença, o juiz Duarte Silva, dirigindo-se aos arguidos, referiu que as praxes são práticas admissíveis desde que não passem para o domínio do crime. E considerou que as penas aplicadas tinham que reflectir o que a assistente sofreu. Na sentença, o juiz fundamentou que o que foi feito a Ana Santos foi para além do domínio ético aceitável.
Praxe não deve ofender a integridade física, moral e psíquica
Os princípios gerais da praxe académica estipulados pelo Instituto Politécnico de Santarém, classificam a praxe como sendo “actos e costumes praticados entre os novos e antigos alunos”, afirmando que o seu principal objectivo passa pela integração de todos na vida académica, afirmando que “a praxe deve ter como bases a solidariedade, amizade e interajuda”.
No regulamento esclarece-se que “a praxe deve ser entendida como prática opcional e voluntária”, e por essa razão os novos alunos podem demonstrar, em qualquer altura, a sua intenção em não fazer parte deste ritual académico. Esclarece ainda “a praxe não deve em caso algum ofender a integridade física, moral e psíquica dos que nela participam”.