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Morreu mais de metade de uma aldeia da Castanheira nas enxurradas de há cinquenta anos
Luísa Fajardo, uma das sobreviventes, com a fotografia do avô

Morreu mais de metade de uma aldeia da Castanheira nas enxurradas de há cinquenta anos

Em Quintas, junto ao Rio Grande da Pipa, sobreviventes não conseguem esquecer noite de terror. A madrugada de 26 de Novembro de 1967 foi de enxurradas, morte e terror em toda a região de Lisboa e particularmente no local de Quintas, Castanheira do Ribatejo. Ali morreram mais de metade da centena e meia de habitantes. O tempo não apagou nem a memória nem o medo. Ainda há sobreviventes que se sobressaltam quando começa a chover. O governo de Salazar tentou minimizar a desgraça e não se sabe ao certo o número de mortos. Calcula-se que tenham sido mais de quinhentos.

A casa de Joaquim André Rodrigues, no lugar de Quintas, em Castanheira do Ribatejo, era uma casa pobre e frágil, junto ao rio Grande da Pipa, numa zona onde hoje não é permitida a construção por ser uma zona alagável. Durante a madrugada de 25 para 26 de Novembro de 1967, uma enxurrada de água, lama e lixo, rebentou-lhe a porta de entrada, varreu o interior e matou-lhe a mulher. Ele e o filho menor salvaram-se por uma unha negra.
“Por uma nesga da porta que ainda não estava tapada levei o meu filho Orlando, que tinha 11 anos. Carreguei com ele aos ombros e já na rua ergui-o para cima do galinheiro que tínhamos ao lado da casa. Dali ele subiu para o telhado e eu fiquei com ele. Comecei a gritar pela minha mulher ‘Esmeralda, Esmeralda’. Estava escuro e continuava a chover com força. Quando levantei algumas telhas para a tentar salvar e vi que a água já chegava ao sótão pensei logo que ela estava morta”.
Faz uma pequena pausa e as lágrimas correm-lhe pela face. Tem 89 anos, refez a vida mas a dor não passa. “Tinha chovido o dia todo uma chuva miudinha. Depois começou a chover com mais força mas ninguém contava que fosse dar naquilo. Houve pessoas que chegaram a casa à meia-noite e à uma da manhã estavam mortas”, conta Joaquim André Rodrigues, enquanto caminha lentamente pela aldeia que na altura tinha pouco mais de 150 habitantes e onde hoje vivem cerca de 230.
“Naquela casa morreu um casal e três filhos que tinham vindo passar o fim-de-semana com os avós. Nem devem ter tido tempo para gritar. A enxurrada entrou-lhes em casa e matou-os”, recorda.
A enxurrada de há cinquenta anos atingiu bairros clandestinos às portas de Lisboa, como Urmeira, em Loures, e Quinta do Silvado, em Odivelas, e casas construídas nas zonas mais pobres dos concelhos de Vila Franca de Xira, Alenquer ou Arruda dos Vinhos, a maioria das quais erguidas junto a cursos de água uma vez que não havia água canalizada nem saneamento básico.
Tal como noutras zonas atingidas pela desgraça, alguns cadáveres de pessoas de Quintas só foram descobertos muito mais tarde. “Seis corpos foram encontrados três meses depois no meio do entulho que ficou acumulado na estrada que liga os Cadafais ao Carregado. Um deles era o de um colega meu do serviço de captações de água da câmara municipal”, refere.
Joaquim mudou-se para uma das casas que foram construídas para as famílias desalojadas, em Povos, mas passa os fins-de-semana no vale das Quintas, na casa que era dos pais da sua segunda esposa, Anania.

Perdeu 27 familiares nessa noite
O tempo passa e abranda a dor mas não a apaga, pelo menos para quem perdeu família, amigos e vizinhos na tragédia. Luísa Fajardo conta que perdeu vinte e sete familiares. Foi na noite de 25 para 26 de Novembro de 1967, tinha ela 13 anos. Naquelas horas de terror perdeu a irmã mais velha, Maria Teresa, os avós maternos, José e Teresa, e mais de duas dezenas de parentes mais afastados. A casa onde morava com os pais e o irmão mais novo não foi atingida e eles não correram perigo.
“Os meus pais acordaram-me quando tentavam arredar a minha cama onde estava a cair água que entrava pelo telhado de telha vã. A minha mãe estava a queixar-se que nunca havia de ter uma casa como devia ser e na altura nem suspeitava do que se estava a passar ali ao lado”, conta Luísa Fajardo. Alertado por um primo, o pai de Luísa saiu de casa para ajudar os sogros e a filha mais velha, que morava com eles mas já não foi a tempo.
Luísa ainda vive na aldeia. É presidente da única colectividade local, a Associação Recreativa do Lugar das Quintas. As suas memórias, somadas com as de muitos outros, ajudam a reconstituir o que se passou na terra.
As marcas do dilúvio ainda persistem
O espectro da tragédia ainda paira sobre a aldeia e as marcas físicas ali estão cinquenta anos passados para recordar que não se tratou de um pesadelo. A antiga escola primária continua só com metade do chão e com as escadas que já não levam a lado nenhum.
O presidente da Junta na época, o ganadeiro Fernando Palha, emprestou tractores e materiais para limpar os terrenos e as ruas e ajudar na reconstrução das casas. A Fundação Calouste Gulbenkian doou, só para a freguesia da Castanheira, 50 mil escudos. Foi erguida uma igreja e, na rua abaixo dela, alinhado com a entrada, está o memorial das vítimas. Luísa sorri enquanto toca no nome do avô. “O memorial teve uma versão antes mas agora tem os nomes de todos os que morreram para que nunca sejam esquecidos”.

Joana Ferreira, uma das sobreviventes, junto à janela por onde escapou

Agora até os chuviscos metem medo

De cada vez que chove Joana Ferreira teme que outra desgraça se abata sobre Quintas. Tinha nove anos na noite da grande cheia, a noite em que o irmão mais novo fez sete meses. “Não me apercebia bem do que estava a acontecer. Ouvimos gritar, mas achámos que era a minha irmã Antónia, que tinha três anos, a pedir para beber água. Só à terceira é que vimos que era um vizinho a chamar pelo meu pai e a dizer que estava toda a gente a morrer”, conta Joana.
O irmão mais velho, Luís Nisa, já falecido, foi quem reagiu primeiro: “Fez-me passar por esta janela, que está quase ao nível da rua, e ajudou-me a chegar à casa em frente”. Joana toca na janela por onde se salvou e vêm-lhe lágrimas aos olhos. O resto dessa noite é um remoinho de correria, gritos e lágrimas e a manhã seguinte trouxe consigo um mar de corpos.
Os pais e irmãos de Joana salvaram-se mas a casa foi arrasada. “Ainda me lembro da minha caixa de costura e dos 20 escudos que o meu tio me tinha dado. Fartei-me de chorar e de pedir a minha caixinha e nunca mais a vi”.
Hoje Joana é casada com Carlos Alberto, 59 anos, e mora no cimo da serra, no Casal Mascote, na casa que era dos pais dele. Tantos anos passados diz que ainda treme ao pensar na tragédia e confessa: “Não interessa o dinheiro que me ofereçam, nunca mais vou voltar a viver no vale”.

Pilhagens após a desgraça

A GNR teve de travar a onda de pilhagens que surgiu após a tragédia. “Houve gente que aproveitou para roubar jóias e bens das casas porque no meio do caos ninguém prestava atenção”, conta Luísa Fajardo. Ela conseguiu entrar no que sobrou da casa dos avós e quis levar uma fotografia que encontrou do avô, que ficara intacta, mas a GNR não permitia. “Tive de lhes implorar que me deixassem ficar com a última recordação do meu avô. Houve um guarda que foi solidário comigo mas disse-me para não contar a ninguém que a tinha encontrado ali”.

Ditadura tentou esconder o drama

“Naquele tempo não podíamos exigir nada. A quem é que íamos exigir com o Salazar no poder? Era aguentar e recomeçar do zero”, conta Joaquim André. Luísa também se lembra do medo que pairava no ar: “A PIDE veio tentar abafar a situação. Eu era miúda e não percebia muito bem o que se passava, mas diziam-me ‘tem cuidado com o que dizes e com o que podem ouvir’. Os jornalistas que quiseram relatar o caso viram entrar em acção o Lápis Azul da censura, por isso os melhores relatos são os dos jornais estrangeiros que a PIDE não podia controlar”.
Há nove anos, em Novembro de 2008, O MIRANTE falou com pessoas de Quintas a propósito da tragédia e uma delas confirmou o que é dito por Luísa Fajardo. “Eu estava emigrada na Bélgica quando aconteceu a cheia. Um telegrama que enviei à minha mãe a anunciar que esperava um segundo filho nunca foi entregue porque ela morreu dentro de casa. Uma fotografia do meu pai morto foi publicada no “Paris Match” mas só a vi depois do parto porque a minha patroa só ma mostrou meses depois. É a imagem do corpo dele resgatado ao lodo e colocado sobre uma porta”, contou à nossa reportagem Maria Rosa Silva.

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