Pessoas com deficiência ainda são olhadas de lado e discriminadas no acesso ao trabalho
O MIRANTE falou com quatro pessoas com deficiência para descobrir as dificuldades com que se deparam no dia-a-dia e como as superam para levarem as suas vidas com normalidade. O Dia Internacional das Pessoas com Deficiência é assinalado a 3 de Dezembro.
“Para mim cada dia é um jogo de xadrez onde o tabuleiro está sempre a mudar”. É assim que Paulo Alves, 43 anos, natural de Santarém e invisual, descreve como é andar sozinho na rua. Os carros estacionados em cima dos passeios, os buracos repentinos, as obras na via que surgem sem aviso, os cães à solta que aparecem sem mais nem menos e a dificuldade em encontrar as passadeiras são alguns dos desafios diários com que se confronta.
Paulo não nasceu cego, apesar de a mãe ter tido rubéola durante a gravidez. Nasceu com glaucomas nos olhos, mas teve uma vida normal até aos sete anos. Foi aí que a jogar à bola com amigos levou uma bolada num olho que lhe descolou a retina. Teve de ser operado 13 vezes em Londres, mas nunca recuperou a visão. “Mas ainda me lembro de tudo, das cores e formatos de todas as coisas”, confessa.
“Se pudesse ver gostava de ter sido piloto de todo-o-terreno”
Em criança, Luís Marta, hoje com 25 anos, de Samora Correia, ia sentado ao colo do pai no jipe todo-o-terreno dele e até aprendeu a conduzi-lo. Era essa a sua maior paixão e gostava de ter seguido a carreira de piloto todo-o-terreno, que em nada condiz com a que tem hoje como massagista numa clínica de fisioterapia em Lisboa. Estudou até ao 12º ano em Samora Correia e tirou em Lisboa o curso de Massoterapia e Técnico Auxiliar de Fisioterapia. Vai e vem todos os dias de transportes públicos e já começa a sentir-se cansado e a pensar em mudar de trabalho e até de cidade.
“Samora não está preparada para pessoas deficientes”, defende Luís, dando o exemplo das ruas mais antigas com passeios estreitos onde cadeiras de rodas têm dificuldade em passar, bem como pessoas invisuais acompanhados pelos cães-guia. O de Luís chama-se Fuji e também é um labrador preto igual à cadela-guia de Paulo, chamada Lira.
Luís é solteiro e também nasceu com um glaucoma na vista. Nunca viu do olho esquerdo e no direito chegou a ter cataratas, descolamento da retina e a receber um transplante de córnea que lhe roubou a pouca visão que restava. Até ao 5º ano os apontamentos e testes eram impressos ampliados, mas a partir do 6º ano passou a ser tudo lido em braille.
Paulo, que vive com a namorada, considera que no campo do acesso à informação houve uma melhoria considerável quando a documentação passou a ser digitalizada e lida em braille, mas alerta que os custos são muito elevados: o ecrã transmissor em braille que liga ao computador custou perto de 6.000 euros e Luís acrescenta que sem o apoio da Segurança Social não teria conseguido comprar o seu computador, que custou 3.000.
“É preciso mudar mentalidades”
Quando começou a trabalhar na Câmara de Santarém, em 2003, após se ter licenciado em Sociologia, Paulo deparou-se com entraves por ser invisual e acredita não ser o único a sentir-se discriminado ao tentar arranjar emprego em empresas. Acredita que tal se deve à falta de conhecimento e às “mentes fechadas” dos dirigentes: “Hoje há o ideal de que a pessoa deficiente, como não terá tanta facilidade em encontrar emprego noutro lado, pode receber uma esmola e não se vai queixar”.
Fora do trabalho, Paulo não sente essa discriminação, sensação que partilha com Luís: “Antigamente notava-se mais o preconceito. Cheguei a ouvir alguns comentários desagradáveis ao longo do tempo, porque nem sempre me cruzei com as pessoas mais maduras, mas hoje está melhor”.
Além de massagista, Luís é DJ em festas, eventos e nos bares e discotecas do concelho de Benavente e é ainda um dos dirigentes da Associação de Jovens de Samora Correia, onde, tal como Paulo em Santarém, se sente acarinhado e compreendido pelas pessoas que o rodeiam.
“Alcanena é um meio pequeno e nunca me senti descriminada”
Também Ana Azevedo, 38 anos, de Alcanena, sente-se compreendida e leva uma vida normal, apesar de só entender os outros através da leitura de lábios. Herdou a deficiência na audição da avó materna e apesar de esta também lhe afectar a fala diz nunca se ter sentido discriminada: “Sou sempre bem recebida onde quer que vá, porque Alcanena é um meio pequeno”.
Na escola foi apoiada pelos professores e conseguiu tirar o 9º ano e um curso de informática. Hoje trabalha no departamento de acção educativa na Câmara de Alcanena. É raro ter de atender directamente o público mas domina na perfeição as restantes funções que passam pela escrita e leitura. Solteira, vive com os pais e como nunca usou aparelhos auditivos por lhe causarem incómodo nem sabe língua gestual, sente “uma certa obrigatoriedade” de se esforçar mais na compreensão do que os outros dizem para poder levar uma vida independente.
“As pessoas olham-me para as próteses e correm para passarem à frente nas filas”
Foi a diabetes que lhe roubou as pernas aos 40 anos, lhe afectou a visão e o levou a precisar de um transplante renal. Carlos Mendes, 55 anos, separado e com dois filhos, é de Cabo Verde e veio para Portugal aos 14 com os pais para receber melhores tratamentos para a doença, que em Cabo Verde era tratada à base de dietas e injecções de insulina excessivas. Em Portugal foi melhor tratado e conseguiu levar uma vida normal. Tirou a 4ª classe, trabalhou na construção civil e como motorista de pesados e aos 40 anos, reformado, dedicou-se à natação adaptada. Com o Alhandra Sporting Club tornou-se campeão nacional em piscina curta S16.
Tal como Paulo Alves, reconhece o preconceito que existe na hora de alguém com deficiência procurar emprego: “Como tenho pouca escolaridade não podia ser chamado para cargos de topo, mas há pessoas deficientes com boas classificações que não são chamadas só pela deficiência!”. A discriminação estende-se aos lugares de estacionamento para deficientes que são ocupados por quem não é e às atitudes que encontra nos supermercados: “As pessoas olham-me para as próteses e correm para me passarem à frente nas filas”.