“Somos todos licenciados em futebol e em religião”
José Carlos Madeira é um empresário de Santarém com sessenta anos de trabalho acumulados.
Recentemente passou o negócio ao filho e ficou com mais tempo para dedicar a outros interesses. Leitor desde sempre, critica um povo que sabe ler mas não lê, logo não estimula a reflexão e o espírito crítico. Uma conversa com um homem que sempre viu muito para além do balcão da sua loja.
As comunidades constroem-se e florescem com o somatório de muitos homens como este: trabalhadores, interessados, determinados e resilientes. José Carlos Madeira, 74 anos, foi até há pouco tempo dono de uma loja de venda de peças para automóveis em Santarém, negócio que passou ao filho mas que continua a acompanhar, embora sem horários tão rígidos. É um sobrevivente a crises, à carga fiscal elevada, aos juros altos e também aos calotes que alguns clientes foram deixando. Mas nada disso lhe fez soçobrar o ânimo diário de abrir a porta da Gigapeças, no populoso bairro de São Domingos, em Santarém, cidade onde reside.
José Carlos Madeira nasceu na aldeia de Abitureiras, no concelho de Santarém, em 20 de Março de 1943. Começou a trabalhar aos 14 anos numa loja de peças de automóveis em Santarém e nunca mais se desligou do ramo, primeiro como funcionário, depois como sócio e patrão, mas sempre conseguiu ver para além do balcão do seu estabelecimento. A leitura, que continua a praticar com assiduidade, abriu horizontes, estimulou a reflexão, deu alento para explorar outras áreas do conhecimento, como a astronomia. Aos 10 anos já pedia ao pai para lhe trazer o jornal quando ia às feiras a Santarém ou a Rio Maior. Hoje, diz, com ironia, “somos um povo que sabe ler mas não lê” e em que “todos somos licenciados em futebol e religião”.
A infância foi passada no campo, em Abitureiras, onde ajudava os pais nas lides agrícolas. Esse interesse permanece actual. Ainda amanha as terras que herdou. Semeia cereais e abastece-se de frutas e legumes na suas propriedades. Diz que as terras, embora não dêem lucro, têm uma função social: para além de estarem a produzir ajudam a movimentar dinheiro com sementes, adubos e mão-de-obra, sendo um pequeno contributo para estimular a economia local. A terra acaba também por ser um escape para a rotina diária da empresa e os fins-de-semana são passados habitualmente em Abitureiras.
Casado, pai de dois filhos e avô de três netos, José Carlos Madeira é um homem com olhar crítico sobre o mundo que o rodeia. Chegou a ter filiação política no pós-25 de Abril, como militante do MDP-CDE, mas depois deixou-se disso. Nos anos seguintes à Revolução dos Cravos foi um dos fundadores do Centro de Convívio de Abitureiras, que ajudou a levar água à aldeia. Era o mais novo de um grupo que queria ajudar a mudar o mundo. O seu mundo.
Tal como a maior parte dos homens da sua geração esteve na guerra colonial. Foi polícia militar em Luanda, capital de Angola, e considera que foi um privilegiado pois nunca saiu da cidade. Na altura já era “moderadamente politizado” e encarou a mobilização como um destino a que era difícil fugir. “Deixei-me ir na onda”, conta.
Como trabalhador-estudante concluiu o antigo sétimo ano do liceu e chegou a pensar em matricular-se na universidade, no curso de Direito, em Lisboa. Na altura, já era casado e tinha um filho e as responsabilidades familiares pesaram na decisão de não prosseguir os estudos. Gostava de Matemática, Português, História e considerava-se um homem de raciocínio rápido. Optou pela vida empresarial e, fazendo o balanço de sessenta anos de trabalho, acha que correu bem. “Nunca perdi nada, deixei foi de ganhar muita coisa por ser eticamente correcto e fiel à palavra dada”, diz.
Muitos habitantes de Santarém preferem fazer compras em Lisboa do que alimentar o comércio da sua terra
Tem há muitos anos empresas com a porta aberta. Nunca pensou desistir, fechar a porta e ir gozar os rendimentos?
Nunca pensei em desistir, porque gosto do trabalho que faço. Continuo activo porque o trabalho faz parte da vida.
Ser empresário num país com uma carga fiscal elevada como o nosso é um acto de coragem?
Requer alguma coragem. Para mim, a carga fiscal não é o principal óbice, embora também seja de levar em consideração. O problema é saber como é que é gerida a receita fiscal, como é que o Estado aplica o dinheiro dos nossos impostos. E é fácil constatar que o Estado aplica mal o dinheiro dos nossos impostos.
Alguns empresários queixam-se dos juros altos e das dificuldades de acesso ao crédito. Também sentiu isso na pele?
No meu caso, e através dos tempos, negociei sempre numa base que considero sensivelmente justa e não me queixo dos juros altos, porque embora não sendo baixos consegui sempre boas taxas de juro. Quando tinha que pedir crédito era numa base em que podia pagá-lo e o banco também sabia disso.
O ramo automóvel sofreu muito com a crise?
Todo o ramo automóvel e toda a vida nacional sofreram com a crise. No sector das peças senti a crise sobretudo na questão das cobranças. Aumentou o nível de cobranças mais difíceis.
E algumas cobranças são tão difíceis que se tornam impossíveis.
Sim, algumas. Mas há dois tipos de incobráveis. Há os indivíduos que deixaram de poder pagar devido à crise e que nos atingem por ricochete, mas são pessoas sérias, e há os indivíduos ‘macacos’, sem ofensa para os macacos, que se aproveitam do dinheiro que não é deles e se esquecem de pagar a quem devem.
Alguma vez pensou em deixar de vender fiado?
É impossível porque o fiado está muito enraizado, faz parte do ‘status quo’ do comércio. O crédito é uma das boas invenções porque permite a quem não tem nada, se for rigorosamente sério, ganhar dinheiro com o dinheiro dos outros. A questão é, após o serviço, pagar a quem se deve e não ir gastar o que não é dele. Se for assim, permite que as coisas funcionem sem dinheiro.
Santarém é uma boa cidade para investir?
Santarém não é boa nem é má, é o que é. O poder de compra em Santarém é muito ou é pouco? E em que ramos de actividade? Uma grande parte da população de Santarém por vezes prefere ir comprar a Lisboa, porque vai passear e divertir-se, e deixa de comprar em Santarém. Os próprios habitantes não alimentam o comércio da sua terra.
E a proliferação de grandes superfícies também não ajuda o chamado comércio tradicional.
Sim, mas em relação ao nosso negócio não nos causa muita mossa porque conseguimos vender igual ou mais barato que eles. As grandes superfícies têm é uma publicidade acutilante que faz crer que vendem coisas mais baratas.
Acha que há demasiados hipermercados em Santarém?
Penso que sim, que há muitos, e apesar de dizerem que criaram postos de trabalho também destruíram muitos empregos que havia, não só em Santarém mas no país todo. Mas está-se a verificar em Santarém a abertura de muitas lojinhas de frutas e legumes que estão a contrabalançar essa hegemonia. Sempre que posso, para comprar pão, frutas ou legumes, recorro a elas, porque em princípio os produtos são de melhor qualidade.
Como vê o centro histórico de Santarém?
É pena que esteja algo abandonado. Mas o que é que se pode fazer? A própria população da cidade não tem tendência a ir lá. Há lá alguns restaurantes e bares interessantes, podia-se ir até lá à noite passear, no entanto a população prefere ficar acomodada a ver televisão ou vai para os restaurantes da periferia onde pode entrar com o carro.
O que pensa do trabalho das associações comerciais e empresariais?
São necessárias. As associações comerciais e empresariais são sindicatos dos patrões. A palavra sindicato é que, por uma questão cultural, parece que assusta e que é um papão. As associações ou sindicatos defendem os seus sócios e a respectiva actividade. Mas por falta desse espírito associativo a maior parte das associações não tem força nenhuma e os sindicatos pouca força têm.
Ainda há sindicatos que conseguem influenciar políticas, como os dos professores ou dos maquinistas…
São sindicatos mais poderosos dentro da pequenez nacional, que conseguem arranhar e fazer com que as coisas não sejam piores. Mas conseguiriam mais se tivessem mais associados e reivindicassem o possível e não cegamente.