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“Faltam líderes que mobilizem e afirmem a nossa região”
Nuno Domingos é técnico superior da Câmara de Santarém desde 1981

“Faltam líderes que mobilizem e afirmem a nossa região”

Técnico superior da Câmara de Santarém há muitos anos, homem de cultura, actor e autor, dirigente associativo e antigo atleta, Nuno Domingos é o mentor e gestor do projecto municipal In Santarém. Em vésperas de mais um feriado municipal, diz que o concelho precisa de projectos mobilizadores e que não têm havido líderes fortes que afirmem a região no contexto nacional.

Já ouvimos chamarem-lhe o décimo vereador, numa alusão ao suposto poder que tem na Câmara de Santarém. Gostava de um dia desempenhar um cargo autárquico?

Essa hipótese nunca se colocou e não sabia que já me tinham chamado isso (risos). Na altura em que a Câmara de Santarém tinha quatro departamentos, eu era um dos directores de departamento. E quem lidera áreas como a da cultura, turismo ou desporto acaba por ter uma visibilidade maior. Se me chamaram isso deve ter sido por essa visibilidade acrescida.

Nunca foi convidado ou nunca se sentiu tentado a integrar uma lista?

Houve uma altura que fui sondado mas num momento muito pré-preparatório. Neste mundo das autarquias há dois tipos de trabalhadores, os funcionários públicos e os funcionários políticos. Os funcionários políticos normalmente acompanham os políticos que os trazem. Quanto aos funcionários públicos, obviamente, todos temos opções políticas e exercemos o direito de voto mas sempre defendi que devemos ter algum recato em relação à participação partidária.

Qual foi o presidente de câmara com quem mais gostou de trabalhar?

Há uma carga afectiva muito forte com o presidente Botas. Ele era um homem de grande afectividade, de grande conhecimento das coisas no terreno. Era um homem do povo. A cidade também era mais pequena, mais concentrada e as pessoas conheciam-se todas. E isso transforma-o num personagem à parte por essa carga emotiva. O Botas marcou-me profundamente.

E em relação ao trabalho feito na cidade e no concelho? Acha que também foi o mais marcante?

Acho que o período em que o dr. Viegas esteve na câmara, logo após o 25 de Abril, e o que o Botas viveu no início, em que tiveram que fazer tudo quase sem nada, foi completamente diferente dos períodos seguintes. O Noras trouxe-nos aquela visão muito ligada à questão patrimonial e à candidatura a património mundial. Rui Barreiro, no seu tempo, concretizou o maior volume de investimento público municipal de que havia memória em Santarém.

A seguir veio Moita Flores.

Pois, desse período prefiro não falar muito…

Entretanto foi convidado para trabalhar na Câmara de Évora. Gostou da experiência?

Sim. É uma cidade mítica para mim. O primeiro curso de teatro que fiz foi em Évora, em 1975. Fiquei apaixonado por Évora e dizia que se algum dia deixasse de viver em Santarém seria para viver em Évora. Nunca pensei que isso viesse a acontecer mas o convite surgiu e eu aceitei. Ainda por cima foi para gerir um centro histórico património da humanidade.

Santarém celebra o seu feriado municipal no dia 19 de Março. Que prenda gostaria de ver a cidade receber?

Gostava de ver aparecer no centro histórico um espaço tipo incubadora para projectos empresariais na área da cultura, da criatividade, do marketing, do design. De um ponto de vista mais abrangente, gostava que Santarém e a região deixassem de ser o único território do país que não tem uma Direcção Regional de Cultura. Há no Norte, há no Centro, há no Alentejo, há no Algarve, há nas ilhas mas o Ribatejo não tem. Dizer que estamos próximos de Lisboa é uma treta, porque o Sardoal está mais longe de Lisboa do que Évora. E também gostava que o Ribatejo voltasse a ser reconhecido e que este território tivesse um nome. Nós somos uma região!

Santarém é uma cidade com muitas capelinhas e poderzinhos. Essa situação tem tolhido o desenvolvimento da cidade?

Todas as cidades têm isso. Porque quem está à frente de uma coisa pugna por ela, é normal. O que pode fazer a diferença é haver lideranças, fundamentalmente políticas mas não exclusivamente, que sejam capazes de mobilizar. Tem faltado essa capacidade de projectar uma visão de futuro que possa ser galvanizadora e mobilize todos os agentes.

Têm faltado vozes firmes e assertivas em relação ao poder central?

Sim. E estou a falar à escala da região. Tem faltado uma liderança política que se afirme face a Lisboa, que reivindique. Por exemplo, porque é que turisticamente somos Alentejo, Centro e Lisboa? Não há afirmação desta região.

Nuno Domingos é também vice-presidente do Círculo Cultural Scalabitano

As mudanças no Festival de Gastronomia e o sobredimensionamento do CNEMA

Esteve durante muitos anos ligado ao Festival Nacional de Gastronomia, de que foi um dos fundadores. As mudanças de figurino entretanto implementadas agradam-lhe?

A proposta nasceu da necessidade de construir uma alternativa que afirmasse a riqueza e a importância cultural da gastronomia portuguesa e a sua relação com o território. O festival pretendia constituir-se como espaço de reflexão em torno dessas questões. E confesso que agora acho que fomos demasiado passadistas, ficámos demasiado preocupados com o levantamento, com o saber o que se fazia, e menos em pensar em como podíamos melhorar e crescer.

E isso tem sido feito entretanto?

De alguma maneira. Há mais preocupações a esse nível. A outra questão essencial eram os almoços que criavam o ambiente que justificava a presença de órgãos de comunicação social diários a dizerem o que estava a acontecer.

O festival perdeu por deixar de ter esses almoços dedicados a determinadas regiões do país?

Perdeu porque deixou de ter a visibilidade inerente ao acompanhamento diário dos órgãos de comunicação nacionais.

Nos primórdios do evento chegou a ser publicado um jornal diário do festival. Era o senhor que o fazia?

Também fazia alguma coisa, mas era sobretudo feito pelo Hélder Pinho.

E quanto ao figurino de hoje do festival?

O festival deixou de ter os almoços e começou a definhar. Era preciso actualizá-lo. Aquilo que sinto é que o esforço feito, sobretudo nos últimos dois anos, veio procurar responder a isso. Sentiu-se o procurar de uma nova linguagem, a valorização da criatividade. O tempo traz sempre novas exigências, novas necessidades. Quando se muda arrisca-se. Às vezes corre bem, outras vezes não.

Durante alguns anos trabalhou também no Centro Nacional de Exposições e Mercados Agrícolas (CNEMA), como responsável da área do marketing. Na altura falava-se na cidade que essa contratação até deu direito a um carro novo.

(Nuno Domingos reage com uma sonora gargalhada) Não, nada disso… Fui para o CNEMA por solicitação da câmara. Penso que o CNEMA pediu ajuda à câmara, porque tinha saído uma pessoa e era preciso organizar a próxima feira. Fui para ajudar e fiquei lá quase dez anos. Foi um período terrível, sem dinheiro, mas mesmo assim criaram-se muitas feiras.

Era assalariado do CNEMA ou da câmara?

Sempre fui funcionário da câmara. O CNEMA compensava-me pelo trabalho extra que tinha lá. Durante dez anos não assisti ao aniversário do meu filho mais velho, que faz anos a 10 de Junho, na altura da feira. E não era só a Feira Nacional de Agricultura. Depois apareceu a ExpoCriança, que eu inventei, a DecorMóvel...

É um entusiasta do novo modelo da Feira Nacional de Agricultura/Feira do Ribatejo ou alinha com os saudosistas que preferiam o certame no centro da cidade?

Há sempre quem possa dizer que a feira podia continuar cá em cima. Eu penso que quando se arrisca podem cometer-se erros. E cometeram-se erros.

Como por exemplo?

O arquitecto Carlos Guedes de Amorim não faria o CNEMA hoje da mesma maneira. O restaurante teria que ter porta para a rua, por exemplo. Certamente que já ninguém quereria um auditório, que não é culpa dele, sem bastidores. Mas é preciso pensar que na altura este seria o terceiro parque de exposições do país. Havia a Exponor, havia a FIL e o CNEMA centrado no sector agrícola e áreas complementares. No tempo que mediou entre a concepção do projecto e a construção a realidade social do país mudou radicalmente. Foram constituídos os núcleos empresariais regionais e todos eles criaram um parque de exposições. E uma realidade que era para ser partilhada a três passou a ser partilhada a trinta e três. Com isso, o projecto passou a estar sobredimensionado.

Acha que a Câmara de Santarém devia ter mais peso no CNEMA, na estrutura e nas decisões?

As câmaras servem para promover o desenvolvimento mas não são empresas, nem são companhias de teatro nem, na minha opinião, devem ter equipas de natação. O papel das câmaras deve ser vigilante, atento e exigente nos desígnios da promoção do desenvolvimento económico. Mas acho que não devem gerir empresas.

Uma associação que não consegue pagar a renda, a água e a luz deve repensar a sua existência

O associativismo não está demasiado dependente do poder autárquico e dos seus subsídios?

Houve uma altura que esteve mas às vezes os tempos de crise também têm coisas boas. A câmara, face ao endividamento que tinha, cortou os protocolos de financiamento durante três ou quatro anos. E as associações tiveram que se virar. Nós, Círculo Cultural Scalabitano, estamos habituados a isso. Quem tem instalações próprias, como nós, tem que pagar a manutenção, a água, a luz, a limpeza, os professores.

Há menos dependência agora do que antes de ter havido esses cortes no financiamento?

Sim. Uma associação que não consegue pagar a sede, a água, a luz e a limpeza deve repensar a sua existência. Porque não pode depender exclusivamente de fundos públicos. O Círculo, por exemplo, tem tido um grande apoio do W Shopping e também de algumas empresas.

Analisando as estatísticas anuais do Teatro Sá da Bandeira, vê-se que os espectáculos pagos têm poucos espectadores. Será por causa das pessoas, dos espectáculos ou dos preços dos bilhetes?

Quando se faz programação cultural de espaços temos sempre a preocupação entre o que são projectos consolidados e aquilo que é inovação. No Círculo, quando fazemos a programação de Primavera ou de Outono, procuramos equilibrar coisas consolidadas, que sabemos que atraem público, com projectos mais arriscados. O teatro municipal pode fazer isso com mais sustentação. O Teatro Sá da Bandeira, com o anterior director, investiu muito nessa linha da inovação mas na minha opinião fê-lo em excesso. Faltou o contraponto.

Faltaram espectáculos mais abrangentes em termos de público?

Faltou fazer essa ponte. Na minha opinião, houve uma exagerada aposta no novo. E isso afugentou um bocado o público. O teatro municipal pode arriscar com a produção contemporânea porque tem suporte financeiro para o fazer, mas faltou pontuar isso melhor com propostas mais consolidadas.

Candidatura de Santarém a património mundial foi abandonada pelo Estado

Como viu o insucesso da candidatura de Santarém a património da humanidade?

Para tudo na vida é preciso ter alguma sorte e nós coleccionámos um conjunto largo de infortúnios.

Nomeadamente?

O trabalho feito e liderado por Jorge Custódio foi sério e muito importante. Poucas cidades se podem orgulhar de ter o levantamento e o estudo que está plasmado nos três volumes da candidatura. Mas as candidaturas não são das cidades, são dos países. São os países que as suportam ou não suportam.

E no caso de Santarém não houve esse suporte?

Não houve nenhum apoio, a ponto de nem sequer ser financiada a viagem do representante do ICOMOS (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios) de Portugal a Paris. O presidente Noras, o Jorge Custódio e a vereadora Graça Morgadinho foram apenas acompanhados pelo embaixador de Portugal na Unesco porque estava lá. Não houve envolvimento do Estado, fomos completamente abandonados. Penso que o país portou-se muito mal com Santarém.

Acha que o centro histórico da cidade merecia esse estatuto?

Na altura, acho que tinha condições para isso. Havia um trabalho brutal de levantamentos, de estudo, de qualificação, os monumentos tinham sido quase todos intervencionados…

Um actor nas horas vagas que foi campeão no salto em altura

Nuno Domingos nasceu no dia 3 de Fevereiro de 1955 na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, mas viveu sempre em Santarém, que considera a sua cidade. Divorciado e pai de três filhos, trabalha na Câmara de Santarém desde 1981, estando sempre ligado à área da cultura mas não só. Actualmente é o gestor do projecto In Santarém, que envolve múltiplos parceiros de diversas áreas com o intuito de animar a cidade durante o Verão. Foi director de departamento na Câmara de Santarém e na Câmara de Évora, onde trabalhou entre Dezembro de 2009 e Agosto de 2014.
Licenciado em Sociologia, com uma pós-graduação em Gestão Pública Autárquica e um mestrado em Práticas Culturais para os Municípios, é vice-presidente do Círculo Cultural Scalabitano e um dos responsáveis do Veto Teatro Oficina, onde também é actor. Criou feiras como a ExpoCriança e foi fundador de outras como a Lusoflora ou o Festival Nacional de Gastronomia.
Durante a sua juventude praticou desporto com algum êxito. Jogou basquetebol em clubes de Santarém, Chamusca e Almeirim até aos 37 anos. Praticou também voleibol, a sua modalidade favorita, e destacou-se no salto em altura, sagrando-se campeão nacional nos campeonatos organizados pelo Inatel.

Discurso directo

RUI BARREIRO: (em 2005) Foi penalizado por muitas coisas. Desde logo, por alguma dificuldade que teria em se relacionar. Há pessoas que têm uma característica mais populista e outras que têm menos. E ele não tem nada. É um excelente técnico, mas não tinha aquela relação visceral com a população, de empatia. E foi também prejudicado por uma obra fundamental para Santarém, mas que se arrastou muito no tempo, que foi a da rede de saneamento básico no centro histórico e na Ribeira.
MOITA FLORES: Confesso que depositei muitas expectativas. Para uma pessoa que se reivindica da área da cultura, como eu, ter um escritor como presidente da câmara – e eu não votei nele – representou uma vaga de esperança muito grande. Acreditei que Santarém se poderia projectar, que poderia ser inovador. Depois, ao longo do tempo, fui construindo a desilusão até que chegou a altura em que pedi para sair de director de departamento. Já não me sentia bem...
RICARDO GONÇALVES: Encontrei o dr. Ricardo Gonçalves como presidente quando regressei de Évora. Trabalhei com ele também no tempo do dr. Moita Flores, como vereador, pois tutelava o desporto e a acção social. Tenho uma boa relação com ele.
CNEMA: Quando foi constituído o CNEMA e o presidente Botas prescindiu da totalidade do capital social, porque a feira era uma coisa da câmara, a expressão que se ouvia na época era que os vereadores que assinaram a posição que o Botas negociou tiveram que engolir um grande sapo. A Câmara de Santarém era dona de tudo e de repente ficou apenas dona de uma parte, que era 19%.

“Faltam líderes que mobilizem e afirmem a nossa região”

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