Antigo autarca da Chamusca é agora “contador de histórias”
Sérgio Carrinho completou 70 anos de vida no dia 18 de Janeiro. Dá aulas de Cidadania na Universidade Sénior da Chamusca e Pinheiro Grande mas não gosta que lhe chamem professor. As lições do antigo presidente da câmara são histórias recolhidas de uma vida em que não faltam episódios que merecem ser contados.
Todas as quartas-feiras de manhã, o antigo presidente da Câmara da Chamusca, Sérgio Carrinho, vai até à Universidade Sénior para falar com as suas gentes. Foi, aliás, o que fez durante toda a sua vida. Dá a disciplina de Cidadania e na sala cerca de 30 alunos escutam as muitas histórias que ficaram de uma vida em grande parte dedicada à causa pública.
O professor - que não gosta de ser assim chamado, prefere ser chamado pelo nome ou apenas por “contador de histórias” - é bem conhecido entre todos ou não tivesse estado 30 anos à frente da Câmara Municipal da Chamusca. Sérgio Carrinho, que acabou de completar 70 anos de vida, na sexta-feira, 18 de Janeiro, mantém o carisma e a arte de falar em público.
Bengala, boné, óculos de ver ao perto e um modesto telemóvel em cima da mesa. Sentado com postura rígida numa cadeira de madeira, capote verde vestido, tom de voz bem articulado, ora áspero ora doce, conta episódios que a memória guarda. “Afectos, memória, partilha”, foram as palavras que mais se ouviram na aula que a reportagem de O MIRANTE assistiu.
Homem de poucas leituras, não tem carta de condução e tem completo o equivalente ao 5º ano de escolaridade. Diz que tudo o que sabe foi de ver e ouvir bem e ter boa memória. “Quando me fizeram o convite fiquei muito contente e aceitei logo, mas deixei bem claro que não sou professor. Aquilo com que poderia contribuir era aquilo que aprendi com as pessoas normais que sabem o que é a realidade da vida”, referiu.
Sérgio Carrinho cresceu no campo, como a grande parte dos alunos ali presentes. O trajecto de vida foi diferente, as responsabilidades que assumiu também, mas é igual em todo o resto. “O ser humano que sou é igual a qualquer outro que aqui está nesta sala. Todos temos é uma história diferente, mas todos temos qualquer coisa para ensinar uns aos outros”.
Quem o conhece desde sempre recorda uma pessoa dura, impermeável a ostentações e até pouco dada ao sentimento. Mas os sinais do tempo passam por Sérgio Carrinho e aos 70 anos, num estado de saúde que não lhe permite uma mobilidade rápida, encontra agora tempo e espaço para aquilo que de mais importante considera na vida: “os afectos”.
“Quando éramos pequenos, pobres, os nossos pais trabalhavam muito. A preocupação deles era trazerem para casa qualquer coisa para dar de comer aos filhos. Não havia tempo para afectos. Hoje as coisas estão muito diferentes, por isso devemos aproveitar o tempo que temos para partilhar momentos com quem mais gostamos de estar e não deixar de dar afectos. Todos precisamos de afectos”, advertiu durante a aula.
Nas aulas aos 90 anos
Eduardo Capitão era agricultor e agora que o tempo livre lhe sobra é aos 90 anos que procura a universidade. “É engraçado que parece que estamos a fazer tudo ao contrário. Primeiro começámos a trabalhar muito novos e agora é que vimos para a escola”, refere entre risos. Conhece Sérgio Carrinho há muitos anos. “Gosto muito dele e continuo a gostar muito de ouvir as histórias do passado. É bom recordar”.
Sair da solidão que sentem assim que põem a chave na porta de casa, desabafar, fazer novos conhecimentos é o que os leva a juntarem-se numa humilde sala da Universidade Sénior da Chamusca e Pinheiro Grande. Cada uma das 30 pessoas presentes dá o seu contributo. O que fizeram, o que fazem na vida, tudo serve de partilha. Os problemas do dia-a-dia ganham uma dimensão menor depois de os desabafarem. “Às vezes entro aqui com as arrelias da vida, mas depois deste bocadinho de convívio vou para casa muito mais leve”, conta Cecília Francisco, 54 anos, uma das alunas.
Mariana Queimado, 68 anos, lança o convite a todas as pessoas que estejam libertas do trabalho. “É muito agradável vir até cá. Aprendemos muito aqui”. Conhece Sérgio Carrinho desde há muito anos, “sempre foi muito simples e comunicativo, é um homem com uma inteligência formidável. Fala com muita certeza. Quando foi para autarca era um empregado fabril e recordo-me como se fosse hoje que achei isso admirável e sempre lutou muito pela Chamusca”, conta.
Para João José Bento, 68 anos, técnico de artes gráficas e ex-vereador de um dos vários mandatos de Sérgio Carrinho, esta é uma oportunidade para não parar na vida. A troca de experiências de vida e o convívio é o que motiva a sua participação. “Um cidadão exemplar” é como define o amigo.
A professora que marcou Sérgio Carrinho
Natalina Monteiro Rabaça foi a professora de Sérgio Carrinho na escola primária do Pinheiro Grande. “Lembro-me de a minha professora ter-me incumbindo de ir 15 minutos mais cedo para a escola para acender o lume para aquecer os pés a uns meninos que vinham descalços e que por vezes chegavam com os pés ensanguentados. Isso marcou-me para toda a vida”, conta o ex-autarca com uma lágrima no olho.
Sérgio Carrinho diz não ter saudades do tempo em que a política era a sua ocupação. “Ando por este concelho com o sentimento de dever cumprido e com uma grande felicidade por ter tido a oportunidade de poder sonhar, decidir, de realizar e também de bater com a cabeça na parede muitas vezes”.
Sérgio Carrinho diz que ainda hoje sente uma “enorme dívida” por todos aqueles que durante o seu percurso de vida lhe deram algo a aprender e deseja ter tempo para poder pagar esses ensinamentos: “Ainda hoje me sinto devedor de qualquer coisa para acertar. E enquanto cá andar estarei sempre disponível para fazer este tipo de acções para poder ajudar as pessoas, para partilhar afectos”.
Sérgio Carrinho deixou obra feita na Chamusca mas sublinha que o que conseguiu foi sempre com um “esforço enorme”.