O fado virou património da desgraça e perdeu a alma
Francisco Pedro, fadista da Barrosa, celebra 55 anos de carreira. Em entrevista a O MIRANTE Francisco Pedro relembra a família, os ‘monstros sagrados’ com quem se cruzou, fala de quem quer matar o fado e do tempo da censura. Histórias de um homem que viveu muito tempo no Brasil porque se esqueceu de regressar a Benavente, a sua casa.
Francisco Pedro nasceu e cresceu na Barrosa, freguesia do concelho de Benavente, longe dos ambientes fadistas dos bairros lisboetas. Fados ouvia-os na rádio e depois de lhes decorar a letra ia para tabernas cantá-los. O primeiro que escreveu foi censurado pela PIDE (Polícia Política do Regime Salazarista) antes de subir ao palco que ia partilhar com Zeca Afonso. O fadista está a celebrar 55 anos de carreira e a preparar o lançamento de um novo disco.
Na sua casa em Benavente, Francisco Pedro demorou a escolher o canto onde se iria acomodar para a entrevista com O MIRANTE. “Pelos nervos”, justifica. Tem mais de meio século de carreira mas continua um homem tímido no palco e fora dele. É filho de um casal de agricultores. Com 12 anos fez-se à estrada com um desconhecido e parou em Alhandra, onde começou a trabalhar numa mercearia. O fado puxou-o rapidamente para os palcos, mas nunca viveu exclusivamente dele. Foi caixeiro-viajante, construtor civil e participou em programas de televisão durante os 36 anos em que esteve emigrado no Brasil. “Esqueci-me de voltar. É a única coisa de que me arrependo na vida”, confessa.
Aos 73 anos prepara-se para lançar um novo disco, até ao final deste ano, não porque sinta que o deve ao fado, ou para provar alguma coisa a alguém. Fá-lo pelo seu público, para lhes dar algo novo para ouvir. Este trabalho discográfico, que vai reunir apenas fados inéditos escritos para assentar que nem uma luva na sua “voz de velho”, foi o ponto de partida para uma entrevista, onde Francisco Pedro soltou a voz e abriu o coração.
Os quatro discos gravados, cada um em sua editora - Roda, Artesanal, Estúdio e Metrosom - entre 1975 e 1977 levam o fadista da Barrosa a cantar êxitos que foram sucesso nas vozes de Manuel de Almeida e João Ferreira Rosa, entre outros célebres ‘monstros sagrados’. “É assim que lhes chamo, pois sempre que os via perto de mim tremia que nem varas verdes. E outros como Carlos Ramos, Vicente da Câmara e Carlos Guedes de Amorim que me faziam questionar se eu merecia estar a cantar ao lado deles”, diz.
Fadista contra a vontade do pai
Quis o destino que depois de vencer um concurso de fado em Alcochete fosse convidado a gravar o primeiro trabalho discográfico, “A Nova Raça do Fado”. Um título atribuído pelos críticos musicais da altura, que encontraram na sua voz e interpretação um compasso que o distingue dos demais.
Começou a cortejar o fado aos 12 anos, decorando os que ouvia na rádio. Não havia quem cantasse na família nem acesso a discos, nem vontade de ver nascer um fadista. “Era só o que me faltava ter um vagabundo na família, disse-me o meu pai. Nunca me chegou a dizer que tinha orgulho em mim. Houve uma vez que foi a Marinhais ouvir-me e ficou ao fundo da sala”, conta. Nem uma palavra ouviu dele. “Tinha um amor rude”. Disseram-lhe na altura que alguém terá visto o pai chorar de emoção.
Foi no tempo em que Francisco Pedro servia à mesa num restaurante em Vila Franca de Xira que viu passar Joaquim da Fonseca de viola às costas. Tinha 16 anos. “Pedi-lhe para me domesticar a voz, em troca de 100 escudos”, lembra. Estreou-se em tabernas e casas de fados e correu as tertúlias do Cartaxo e Vila Franca de Xira, até a sua voz ir morar para o Bairro Alto, em Lisboa, quando tinha 19 anos.
O fado foi banalizado e perdeu a alma
Há quem cante fado e há quem seja fadista. Há até quem o queira assassinar. “O fado hoje sofre em vozes que não se deviam atrever a cantá-lo. Mas hoje qualquer um contrata um estúdio e grava um CD”. Em vez do selo das editoras, o fado tem hoje o selo do turismo. “Virou património da desgraça. Foi banalizado e nalguns casos perdeu a alma”, refere.
Francisco Pedro lamenta que as rádios não passem fado regularmente, mas apenas em programas específicos. Não percebe porque não pode ser misturado com outros estilos musicais. Criaram-se barreiras que o afastam do ouvido das pessoas. “Talvez seja tão bom que não mereça ser misturado com tanta porcaria musical”, atira.
“Vivo entre o palco e a solidão”
Chamam-lhe o fadista castiço. Porquê? “Não sei, só sei que canto com alma, filtro pelo coração e uso um altifalante chamado garganta”. Em palco, os olhos estão quase sempre cerrados. “Se olhar tenho medo de ver a reacção das pessoas”. E a melodia é por regra triste, porque o fado é uma expressão da alma e se ela for triste, como é o caso, o fado sai triste”.
A sua tristeza mora entre o palco e a solidão. Mesmo a cantar para 12 mil pessoas, no Maracanãzinho, no Brasil sentiu-se sozinho. “Não existe pior solidão do que aquela que se sente quando se está acompanhado”.
A cantar fado, o que mais gosta de fazer na vida, acompanha-o José Carlos Marona à guitarra, Alberto Corga na viola e Xico Almeirim, no baixo. Tem um repertório de 53 músicas e há 55 anos que abre sempre com o “Fado Seixal”. Quando olha para o futuro é a cantar que se imagina.
Memórias da PIDE: “Queres levar porrada ou ir para a prisão?”
Sempre cantou fados de outros. “Não tenho jeito para a escrita, acho que não sou suficientemente bom. Mas só canto aqueles que sinto”, diz. Chegou a escrever três, mas nunca os cantou. Um deles escrito à mão numa folha de papel foi censurado pela polícia política, em 1964, numa noite em que ia partilhar o palco com Zeca Afonso. “Onde estava o Zeca estava a PIDE. E eu, ingénuo politicamente, queria estrear o “Tamanquinhas” que falava das mulheres que mondavam o arroz, vigiadas pelos capatazes (Oh povo da minha aldeia / Oh gente da borda d’água / a tua vontade é cheia de fugires dessa cadeia da vida cheia de mágoa). Rasgaram-no e perguntaram-me: queres levar porrada ou ir para a prisão? Nunca mais tive coragem de o cantar”, conta.