Vigilantes da natureza são pau para toda a obra
O MIRANTE acompanhou um dia de trabalho de uma equipa de vigilantes no Parque das Serras de Aire e Candeeiros e percebeu que além de combaterem incêndios, passar multas e contar aves, por vezes são também o único contacto de populações que vivem em zonas mais remotas.
Chegam onde quase ninguém chega. São vigilantes da natureza e além de identificarem cada barranco, cada monte, cada planta e cada animal ainda conhecem os habitantes dos lugares mais recônditos da serra.
O MIRANTE acompanhou um dia de trabalho de uma equipa de vigilantes da natureza no labirinto de caminhos ladeados de muros de pedra no Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros (PNSAC). Um trabalho que António Frazão e Gabriel Simões já fazem há mais de três décadas, mas mesmo assim confessam que todos os dias são surpreendidos com algo novo. “Todos os dias descobrimos pormenores. É um território que ainda nos surpreende, pode ser a descoberta de um novo algar, de um animal ou planta ou simplesmente reparar num maroiço [monte de pedras formado em cima de uma pedra base que os agricultores não conseguiram retirar da terra] que não tínhamos reparado antes”.
Por ser sempre diferente a paisagem não os cansa. Para ambos é na Primavera que a serra se torna mais bonita, com o despontar de orquídeas selvagens por entre o verde que contrasta com os muros calcários. Mas o trabalho de vigilante não é apenas o de observar a natureza, por vezes é preciso agir e essa é a parte mais difícil.
Segundo os estatutos da profissão, em certas circunstâncias, os vigilantes possuem poderes de polícia, como voz de detenção e apreensão de documentos e direito de acesso a estabelecimentos ou propriedades sem mandato. Para António e Gabriel, autuar alguém é sem dúvida a parte mais difícil das suas funções. “É muito desagradável ter que penalizar alguém por ter feito o que não devia. Preferimos sensibilizar para que não cometam a infracção”, referem os vigilantes, acrescentando que o importante é marcar presença no território e tentar detectar as transgressões o mais precocemente possível. “Se forem detectados no início alguns incumprimentos são fáceis de resolver”, dizem.
Mediação em vez de repressão
António Frazão é de Chãos, freguesia de Alcobertas, concelho de Rio Maior. Gabriel Simões é de Vale Alto, freguesia de Minde, concelho de Alcanena. A proximidade ao local de trabalho e o conhecer as gentes é outra das dificuldades acrescidas quando há incumprimento de regras. Conhecem toda a gente e toda a gente os conhece, têm ali amigos e familiares e é difícil repreendê-los quando é necessário. Por isso enfatizam que a sua função não é a repressão mas sim a mediação. Pretendem compatibilizar as actividades humanas com a conservação da natureza.
António e Gabriel congratulam-se por se ter rompido com o anterior paradigma de gestão das áreas protegidas onde se defendia a ideia de isolamento dos locais a proteger e de interdição às actividades humanas. Os vigilantes apontam como cada vez mais evidente o seu papel de agentes educadores da sociedade.
Para António Frazão, o corpo de vigilantes possui os funcionários melhor preparados para as funções que têm que desempenhar. Têm noções sobre património, edificado e natural, sobre ecologia, biologia, geologia, geografia e até um pouco de psicologia para o contacto com as populações. Quando entraram para a profissão era obrigatório ter o 12º ano. Hoje já quase todos os que se candidatam ao lugar têm formação superior.
“Há 20 anos éramos nós que falávamos e ouvíamos as pessoas isoladas nestas serras”, contam-nos. Hoje existem outras formas de contacto como os telemóveis e, embora se note uma desertificação crescente nos locais mais remotos, de acordo com os últimos Censos a população nas áreas protegidas aumentou. Gabriel defende que estes números falseiam a realidade e devem-se ao facto de existirem aglomerados populacionais integrados em áreas classificadas como protegidas.
Combate a incêndios e contagem de aves
Entre as funções do vigilante da natureza está a primeira intervenção em caso de incêndio. Por isso se deslocam em carrinhas 4x4 equipadas com mangueiras e um tanque de água. Contudo falta-lhes material de autodefesa e de protecção.
A monitorização de espécies selvagens e habitats, o manejo e recuperação de fauna selvagem, a monitorização de espécies migratórias e realização de censos populacionais fazem também parte das suas funções diárias.
No dia em que os acompanhámos pela serra, na primeira semana de Agosto, procuravam gralhas-de-bico-vermelho, uma espécie protegida e residente nos planaltos da Serra dos Candeeiros e de Santo António, nas zonas de pastagens e mato rasteiro. Esta espécie nidifica no interior dos algares da região e tem uma população estimada de cerca de uma centena de exemplares.
António e Gabriel utilizam o telemóvel para fotografar os bandos de aves que depois são contabilizadas por computador. Normalmente andam com uma tesoura de poda e cortam os ramos de zambujeiro que por vezes dificultam a entrada das aves nos algares [cavidades no solo calcário]. Com alguma frequência são também feitas acções de anilhagem de aves para melhor controlo da população.
Faltam efectivos para vigilância
António Frazão e Gabriel Simões são sócios da Associação Portuguesa de Guardas e Vigilantes da Natureza (APGVN), presidida por Francisco Correia. Tal como defende a associação, também os vigilantes se queixam da falta de efectivos e dão como exemplo as cerca de duas dezenas de vigilantes (pertencentes ao Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas - ICNF e à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo) que fazem a cobertura dos distritos de Santarém, Lisboa e Leiria.
A seu encargo têm a vigilância de mais de 60 mil hectares de terreno, com áreas tão diversas como o Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros, a Reserva Natural do Paul do Boquilobo, a Reserva Natural do Estuário do Tejo ou as Matas Nacionais de Leiria, do Escaroupim, da Machada e das Virtudes.
Dali saíram as pedras que pavimentaram a EXPO 98
Desde a sua implementação na região, em 1986, o Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros tem como preocupação compatibilizar a actividade extractiva com o desenvolvimento sustentável e a conservação da natureza. Os vigilantes da natureza são também responsáveis pelo trabalho de ordenamento e recuperação de áreas degradadas de antigas pedreiras de calçada que tiveram o seu auge em 1997/98.
Das serras foram extraídas as pedras utilizadas para pavimentar todo o recinto da Expo 98 e, mais tarde, para cobrir as ruas de Macau, uma herança que Portugal ali quis deixar antes de perder a soberania do território para a China em 1999.
Foi também por essa altura que começaram as preocupações ambientais e a obrigação de requalificação dos espaços das pedreiras abandonadas. “Houve muita adrenalina. Foi muito difícil mudar mentalidades. Podemos dizer que os donos das pedreiras tinham cabeças duras”, contam-nos António e Gabriel entre risos.
Até ao momento foram recuperados 170 hectares de área de pedreiras. Segundo os vigilantes, o objectivo é potenciar outras actividades como o turismo. “É importante diversificar a oferta. Há cerca de 20 anos só se via potencial nas pecuárias e nas pedreiras, hoje sabe-se que há muito mais e que se cuidarmos do ambiente só temos a ganhar. Quer em termos ambientais quer económicos”, remata António Frazão.