A atribulada história de vida de Eugénia Roque
Aos 80 anos é um exemplo de resiliência, superação e dinamismo. Começou a trabalhar no campo em criança quando devia estar na escola. Casou, foi vítima de violência doméstica, divorciou-se. Foi criada de servir, cabeleireira e emigrou para a Bélgica, onde fez vida e encontrou o amor. Regressou há 12 anos à terra natal, no concelho de Santarém, mas não se acomodou à reforma. Dedicou-se aos bordados e outras artes e, agora, concretizou o sonho de expor os seus trabalhos.
A vida de Eugénia Roque dava um livro. É a própria que começa por afirmar, quando a reportagem de O MIRANTE chega a sua casa em Casal da Estrada, uma localidade da freguesia de Casével, concelho de Santarém, para ver como decorrem os preparativos da sua primeira exposição, resultado de alguns anos de dedicação a bordados, azulejos, pinturas em vidro e até os próprios vestidos que usa.
Eugénia Roque completou 80 anos no dia 27 de Setembro. A azáfama era enorme logo na quinta-feira antes da exposição, inaugurada no sábado, 28 de Setembro. Caixas, caixinhas e caixotes ocupam o espaço da sala. A exposição decorreu na Quinta Nova, em Comeiras, onde amigos e familiares não quiseram faltar.
Os bordados são uma paixão relativamente recente na vida de Eugénia Roque. “Só há pouco tempo é que aprendi a fazer estas coisas. A minha vida foi de muita luta e muito trabalho. Não tinha tempo para estas coisinhas”, desabafou entre risos a
O MIRANTE.
Quando casou, com 22 anos, levava consigo mais de uma década de trabalho. “Só andei dois meses na escola. Entrei em Outubro e saí em Dezembro, porque nasceu uma irmã e os meus pais tiraram-me da escola para ficar a tomar conta dela”, conta. Só aos 26 anos, já casada e mãe de dois filhos, um rapaz e uma rapariga, é que aprendeu a ler e a escrever. Trabalhava como empregada em casas de senhoras durante o dia, ia buscar os filhos à creche, dava-lhes o jantar e à noite ia à escola.
Desde a labuta do trabalho de campo, que começou aos 11 anos, seguindo o exemplo dos pais, ambos trabalhadores rurais, passando por criada em casas de senhores em Santarém, Eugénia tornou-se, talvez por isso mesmo, numa mulher de desafios e ainda hoje muito activa.
Eugénia pouco esforço faz para conseguir estar totalmente adaptada aos tempos modernos. Tão pouco se nota a sua idade na energia que irradia e que passa para os outros. “Sempre a conheci assim. Tem uma garra muito grande. Quando me disse a idade que tinha, quando chegou à UTIS (Universidade de Terceira Idade de Santarém) nem queria acreditar. Eu com 70, feitos há pouco, até me sinto envergonhada de me queixar de algumas dores ao pé dela”, referiu uma colega de Eugénia no dia da exposição.
Não a incomoda que os jovens de hoje estejam mais voltados para as “coisas mais modernas” do que para os bordados que faz. “Eu própria pouco sabia fazer quando era mais nova. Levei um pequeno enxoval quando me casei, mas pouca coisa, porque não sabia fazer nada, nem tinha tempo para isso”, diz Eugénia.
Só em 2008, quando começou a frequentar as aulas das universidades seniores de Santarém e Torres Novas é que aprendeu algumas artes. Acabou por aprender rápido e neste momento é aluna e professora em ambas as instituições e ainda tem tempo para dar aulas no Secorio. Aliás, esta é a primeira exposição de artigos da sua autoria, mas Eugénia Roque foi já a impulsionadora de várias exposições de trabalhos das suas alunas.
Um casamento desastroso e a ida para a Bélgica
Ainda durante o casamento foi para Lisboa, por causa de uma proposta de trabalho que o marido teve como alfaiate. “Foi pena não ter tido juízo, porque teria sido um grande alfaiate”, diz, ao levar os olhos ao chão, quando recorda os “fatídicos” sete anos que passou casada. “Tive que fugir. Literalmente fugir. Porque ele dizia que me matava e eu acreditei. Levei muita porrada”, recorda.
Fugiu para casa de uma irmã onde ficou com os filhos durante alguns meses. Tinha na altura um sonho: ser cabeleireira. Ainda em Lisboa foi tirar o curso, abriu o próprio salão e conseguiu organizar a sua vida a arrendar uma casa.
Mas a vida tirou-lhe outra vez o tapete. “Não tratei dos papéis do divórcio e o meu ex-marido assim que soube que eu tinha aberto o cabeleireiro contraiu uma série de dívidas que me caíram em cima”. A solução foi vender o salão e para tentar uma nova fase, rumou à Bélgica, sem nada, sem conhecer ninguém e sem saber falar uma palavra de francês. Esteve quatro anos sem os filhos e raramente os via.
Só em 1974, ano da revolução, é que conseguiu vir buscar os filhos. Ambos ainda permanecem na Bélgica onde conseguiram ter condições para uma vida melhor. Eugénia Roque esteve na Bélgica 36 anos, voltou a casar, com um belga que assim que pôs os pés em Portugal disse que era aqui que queria passar o resto da vida. Ambos reformados, regressaram a Casal da Estrada, onde compraram e restauraram a casa dos avós maternos de Eugénia e onde se acomodaram desde 2007.