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“As grandes questões da literatura neo-realista continuam actuais nos nossos dias”
Raquel Henriques da Silva terá a responsabilidade de renovar a exposição permanente do MNR

“As grandes questões da literatura neo-realista continuam actuais nos nossos dias”

A historiadora Raquel Henriques da Silva é directora científica do Museu do Neo-Realismo há dois anos. Doze anos depois da inauguração a actual directora tem a responsabilidade de actualizar a exposição permanente. Nesta primeira entrevista fala dos resultados limitados do plano de leitura das escolas, da pertinência do movimento neo-realista nos dias que correm e da candidatura que está em marcha para que o museu vilafranquense passe a integrar a Rede Portuguesa de Museus.

Raquel Henriques da Silva recebeu O MIRANTE no seu gabinete, num terceiro andar do museu com vista para a Rua Alves Redol, a 22 de Novembro, pouco depois da hora de almoço, num dia em que as funcionárias da limpeza andavam atarefadas a limpar alguma água que se infiltrara no edifício devido às fortes chuvas dessa manhã. Não é grave mas às vezes acontece, viemos a saber.
A responsável deu aulas de manhã na faculdade em Lisboa e deslocou-se a Vila Franca de Xira para conversar com o jornalista de O MIRANTE e adiantar algum trabalho do museu. A entrevista decorreu sem interrupções numa mesa redonda que também serve para reuniões entre a equipa do museu.
Foi convidada pelo município de Vila Franca de Xira há dois anos para ser a nova directora científica do Museu do Neo-Realismo (MNR). Aceitou logo?
Não. Pensava que só ia ficar um ano e aceitei ficar até 2021. Depois disso não vou continuar. Sempre gostei muito deste museu. Quando a Maria da Luz Rosinha avançou com este projecto eu era directora-geral dos museus e participei com muita alegria no encontrar do financiamento comunitário para a sua construção. Foi uma honra assumir este cargo.
Foi directora do Museu do Chiado. O que trouxe de novo e diferente para o MNR?
Actualmente, e infelizmente para o Museu do Chiado, posso dizer que o MNR tem melhores condições que ele. Os museus nacionais estão numa profunda crise de falta de meios. Aqui não são tão graves. Quando cheguei quis chamar a atenção para o facto do neo-realismo não ser apenas português, fi-lo com a exposição do Portinari. O segundo objectivo é apresentar já no início de 2020 a candidatura do MNR a museu da Rede Portuguesa de Museus. Cumprimos todos os requisitos. Por fim, o grande desafio para 2021 é renovar a exposição permanente, que está patente desde 2007. Para o ano é renovar o segundo andar e em 2021 renovar o terceiro andar do museu.
Para isso é importante ter uma boa equipa nos bastidores.
O museu tem uma equipa extraordinária, são eles que trabalham, eu apenas coordeno, ouço e ajudo. A imagem do museu é muito forte e alterar a exposição permanente é uma grande responsabilidade. Não poderá correr mal. Poderemos ter de reconverter e fazer pequenas alterações mas estou optimista. É uma questão de rigor.
O MNR é um museu gratuito que vive na alçada da câmara. Isso deve ser um exemplo?
Existem museus nacionais que dependem da administração central e alguns, poucos, museus privados. Os museus de tutela municipal têm-se defendido melhor das crises. Gosto muito do trabalho das autarquias e a actividade cultural de Vila Franca de Xira é excepcional. O MNR tem condições de trabalho muito agradáveis e o orçamento não é miserabilista como noutros. Mas não fazia mal nenhum que alguma coisa se pagasse para visitar. Compreendo que é simpático não pagar e há essa tradição de acesso gratuito. Mas hoje em dia paga-se tudo e as pessoas podem fazer opções. Se a câmara mantém um museu gratuito é porque acha que o peso que os ingressos lhe dariam não era expressivo. Mas noutros é e poderia ajudar a financiar a actividade.
Mas a verdade é que em alguns museus, a visita de uma família ainda sai caro...
Os museus não são caros em Portugal. Deixo uma comparação de risco: os estádios de futebol estão cheios e os ingressos aí são de custos superiores. São opções.
O neo-realismo ainda tem importância?
A cultura neo-realista é fundamental na modernidade em Portugal. Li com imenso gosto Alves Redol quando era adolescente. Não li o Redol de um ponto de vista doutrinário. Li-o por ser um excelente romancista. Se me pergunta se o neo-realismo está esquecido eu diria que está ele como o surrealismo, o romantismo e outros, isso depende do nível cultural da sociedade. Tem sempre uma expressão de elites, de minorias...
Infelizmente nem sempre se encontram novas edições de obras antigas.
Os livros existem, o grande problema é a difusão e encontrá-los nas livrarias. Em Vila Franca de Xira estes livros estão todos disponíveis na biblioteca municipal. As pessoas podem ir lá requisitar para os ler. Mas hoje o mercado é muito diverso. Há teses de mestrado, doutoramento e estudos de especialidade sobre estes escritores e este movimento, portanto eles são estudados e a visão sobre eles tem progredido. Mas os adolescentes hoje têm menos apetência para a leitura. Os meus alunos são universitários mas não leram a maior parte dos romances portugueses. Para mim, que fui formada por livros, isso faz-me impressão. Não sei o que fazer para alterar isso. Incentivar à leitura cabe às famílias, não podem ser só as escolas. A leitura obrigatória nas últimas décadas tem tido resultados muito limitados. Do que são obrigados a ler ficam apenas uns resumos, umas páginas. A leitura obrigatória nas escolas não é a melhor.
O MNR é um espaço privilegiado de investigação e estudo destes autores.
Os alunos procuram muito o nosso acervo, a equipa é muito boa e temos condições de acolhimento. O número de estudantes e investigadores tem-se mantido constante. Entre visitantes e utentes do centro de documentação são mais de 12 mil por anos. Temos uma biblioteca recheada e com algumas obras raras. Temos, por exemplo, a obra completa do Fernando Namora. Estamos sempre abertos, quer para outras instituições que nos pedem materiais, nomeadamente para exposições, quer para investigação. Pessoalmente penso que temos a capacidade de crescer mais.
Sente que se valoriza suficientemente o neo-realismo em VFX?
Valoriza-se aqui e no país. O museu é na verdade um museu nacional porque não há outro como este. Mas não lhe podemos mudar o nome de Museu do Neo-Realismo para Museu Nacional do Neo-Realismo.
Nos tempos que correm, de crescimento do populismo, temos todos a aprender com esta corrente artística?
Nunca tivemos tanta liberdade, confronto e direitos como agora. Muitas das questões do neo-realismo são actuais. Vamos fazer uma exposição, que inaugura daqui a um ano, que vamos chamar de representações do povo, em que a tónica fundamental são as classes com menos meios, e meter o povo no centro da reflexão. Vamos mostrar que algumas questões que o neo-realismo levantava e tratava mantêm-se actuais nos nossos dias.

Uma mulher que detesta incompetência

Raquel Henriques da Silva nasceu em 1952 em Cascais, onde ainda vive. Diz conhecer bem Vila Franca de Xira, cidade que considera simpática e de gente afável. Conhece os problemas de estacionamento e por isso vai sempre de comboio para o museu. “Quando vêm pessoas de fora ao MNR eu previno-os disso mesmo e também os incentivo a virem de comboio”, confessa a O MIRANTE. Elogia os bons restaurantes da cidade e diz já ter trazido amigos para os conhecerem.
“Vila Franca de Xira tem os problemas de uma cidade suburbana mas tem reagido muito bem a isso. O centro histórico está bem conservado e no campo da cultura só o facto de ter o MNR, o museu municipal e a Fábrica das Palavras são aspectos muito positivos”, reflecte.
Não tem partido político e tira-a do sério a lamechice e a incompetência. Já chamou idiota a quem diz que estudar a história é uma perda de tempo. “A história não é mestra e não se repete, não é cíclica, pode tirar-se alguma aprendizagem mas ninguém aprende com ela”, refere. É doutora em História da Arte pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Desde 2005 coordena o mestrado em Museologia e lecciona História da Arte. Colabora com a Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. Foi directora do Museu do Chiado entre 1993 e 1997 e do Instituto Português de Museus de 1997 a 2002. Foi vogal da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República.
É membro do Conselho de Administração da Fundação Instituto Arquitecto José Marques da Silva da Universidade do Porto. A 30 de Janeiro de 2006 foi feita Comendadora da Ordem do Infante D. Henrique e recebeu, em 2012, o Prémio Femina pelo estudo e divulgação da Cultura, História e Sociedade Portuguesa no estrangeiro e na Lusofonia.

O papel da associação promotora

Questionada sobre a pertinência e necessidade da existência da Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo quando já existe o museu, Raquel Henriques da Silva assegura que “faz sentido” essa colectividade existir. Nega que haja um clima de guerrilha entre as duas entidades e que quando há tensões ou problemas “sentamo-nos à mesa e resolvemos”. Mas, na generalidade, diz haver uma boa partilha de experiências e espólios. “Eles fazem um trabalho complementar ao museu muito interessante”, frisa.

Tauromaquia é um espectáculo do passado

Para a directora científica do Museu do Neo-Realismo, a intenção do município de avançar com um Museu da Tauromaquia é uma boa ideia mas ressalva que, pessoalmente, considera que a lide de toiros é um espectáculo do passado que deve ir terminando. “Acho completamente errado proibir e estas coisas não podem acabar por decreto. A tourada, como historiadora, é um tema artístico importante, fortíssimo, com ressonância económica, social e cultural muito importante. Tenho consciência disso e acho bem haver um museu”, defende.

“As grandes questões da literatura neo-realista continuam actuais nos nossos dias”

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