Estar internado em casa é um luxo ao alcance de cada vez mais pacientes
O MIRANTE acompanhou uma equipa do Hospital Distrital de Santarém no seu giro de hospitalização domiciliária. Um serviço que começou há seis meses e que permite aos pacientes receber no conforto do lar o mesmo tratamento que teriam no hospital.
Na sala dedicada à hospitalização domiciliária, no nono piso do Hospital Distrital de Santarém, ajeitam-se os últimos preparativos para a ronda da tarde que leva uma equipa de médico e enfermeira a Almeirim.
É revisto o processo clínico, orienta-se a medicação, imprimem-se as vinhetas para pedidos de análises e tudo o que vai para dentro do “saco das visitas”: luvas, agulhas, cateteres, sacos de medicação e, muito importante, o dossier com o historial clínico de cada paciente.
As orientações são dadas pela enfermeira Ilda Veiga. Com 61 anos é o elemento mais velho da equipa e não acompanha as visitas domiciliárias. A seu cargo tem também a área de formação.
É Ilda quem nos explica o modo de funcionamento deste modelo de prestação de cuidados em casa, uma alternativa ao internamento convencional iniciado há cerca de seis meses no Hospital de Santarém.
Durante o dia, de segunda a sexta-feira, há dois turnos, o da manhã e o da tarde, que normalmente integram um médico e dois enfermeiros, consoante as necessidades dos pacientes. Entre as 00h00 e as 08h00 há sempre um médico e um enfermeiro de prevenção para qualquer chamada de emergência.
Yahia Abuowda, 37 anos, médico de serviço no turno da tarde, com nacionalidade portuguesa mas natural da Palestina, reforça que as primeiras 24 horas e a data de alta do paciente são situações que requerem a presença de um médico. Nos restantes dias, salvo excepções, a visita pode ser feita apenas por enfermeiros. Yahia integrou a equipa em Dezembro de 2019 e está em exclusividade neste serviço.
A hospitalização domiciliária teve início no Hospital Distrital de Santarém em Julho do ano passado. Inicialmente a equipa verificava os registos e seleccionava os pacientes que tinham condições e que cumpriam os critérios para integrar esse regime. Os doentes que integram esta solução inovadora fazem-no normalmente aconselhados pelos profissionais de saúde. São raros os pedidos que partem do próprio doente, por ainda haver desconhecimento, embora, segundo Ilda Veiga, comecem a surgir cada vez mais pacientes a pedir para ficar “internados” em casa.
Os critérios clínicos básicos para poder integrar a hospitalização domiciliária são um diagnóstico definitivo e estabilidade clínica. Dentro dos critérios geográficos estão o assegurar uma resposta em 30 minutos, em caso de agudização da doença.
Há também a considerar os critérios sociais, como ter um cuidador a tempo inteiro e condições de habitabilidade. Mas o principal factor, aquele que não pode falhar nunca é a voluntariedade. “Tem que ser o doente a aceitar esta solução”, reforça Ilda Veiga.
“Ao início os pacientes ficam um pouco reticentes, mas no final há uma grande satisfação. Normalmente ficam com pena quando têm alta. Por vezes já nos aceitam como fazendo parte da família”, reforça a enfermeira Mara Nunes, 39 anos. Mara integra a equipa desde o início. Em 2017 recebeu um email com a apresentação do projecto, coordenado por Ana Rita Paulos, inscreveu-se e foi admitida. É ela quem está encarregue de colocar no “saco da visita” tudo o que é necessário para a deslocação.
Yahia Abuowda explica-nos que nos casos em que é necessário fazer um exame complementar de diagnóstico, como um raio X ou um TAC, o paciente desloca-se ao hospital. Nesta deslocação o doente pode optar por seguir de ambulância ou em viatura própria. “Em caso de agudização da doença, a internalização no hospital também está garantida”, assegura o médico.
Ilda Veiga aponta como grandes vantagens da hospitalização domiciliária o facto de os pacientes ficarem longe de infecções e perto do que lhes é familiar. “Nada se compara à nossa casa”, acrescenta sorridente. Não há um limite de tempo de internamento domiciliário, o paciente permanece nesta situação até ter alta.
Estar internado não é sinónimo de estar deitado num hospital
Depois de 15 minutos de viagem entre o HDS e Almeirim chegamos a casa de Hugo Lourenço.
Um prédio de construção recente no centro da cidade. Subimos ao segundo andar e é o próprio Hugo quem abre a porta à equipa médica e a O MIRANTE.
Hugo Lourenço, de 43 anos, tem uma diverticulite, uma infecção no intestino. É uma pessoa autónoma e independente, por isso a sua cuidadora, a esposa, pode ausentar-se. Graceja que tem um cuidador de quatro patas, o pequeno canídeo que brinca na sala com uma bola de borracha pedindo atenção.
O paciente está em casa há três dias. “Fui rebuscado”, graceja. Tinha alta condicionada e foi contactado para saber se teria interesse na hospitalização domiciliária. Apesar de não conhecer bem o sistema disse logo que sim e aponta as vantagens: “diminui o risco de apanhar uma infecção hospitalar, há privacidade, higiene, alimentação ao gosto do paciente…” Além disso refere também as vantagens para o hospital como a poupança de água, de refeições e o dar lugar a outros mais necessitados.
Elogia a equipa que o espicaça a dizer algo que seja possível melhorar. “Nada”, responde. A coordenadora do projecto, Ana Rita Paulos, que entretanto se juntou à equipa, insiste: “Talvez mais visitas”. “Não. Está tudo na conta certa”, remata peremptório e sorridente.
O aplique na parede é o suporte improvisado por Mara Nunes para a medicação que vai caindo gota a gota e entrando pelo cateter colocado no braço. “Temos que perceber que há doenças e doenças e estar doente não é sinónimo de estar deitado numa cama de hospital”, diz-nos o paciente assegurando que vai fazer tudo o que estiver ao seu alcance para passar a palavra, até porque, refere, alguns profissionais de saúde não têm conhecimento deste sistema.
Yahia confirma. “É um serviço recente e desconhecido de boa parte dos médicos do HDS”. Para contrariar isso está a preparar alguns folhetos informativos para distribuir dentro da unidade hospitalar.
“É preciso desmistificar. O tratamento neste serviço é igual ao que teria no hospital, mas melhor porque estou no conforto do lar. Aqui posso ler, ver televisão, estar com a família, brincar com o cão. É a minha casa”, diz-nos Hugo Lourenço, fotógrafo amador e empresário na área da óptica e da mecânica.
Distraidamente vai colocando algumas dúvidas ao médico e à enfermeira sobre os tratamentos e a medicação, mas rapidamente a conversa muda de rumo e centra-se em curiosidades quanto à terra natal de Yahia Abuowda, a Palestina.
Ir à China e voltar
A Unidade de Hospitalização Domiciliária do HDS entrou em actividade em Julho de 2019. Actualmente o serviço tem capacidade para seguir seis doentes na área de influência do hospital. Casével é a localidade mais distante onde já seguiram um paciente. Mas tiveram também casos em Vila Nova de São Pedro, Malaqueijo, ou Foros de Benfica. Entre Julho de 2019 e 31 de Janeiro de 2020 as equipas percorreram perto de 25 mil quilómetros, uma distância equivalente a uma viagem de ida e volta à China, e realizou 1.247 visitas nesta modalidade assistencial que, de acordo com Ana Rita Paulos, coordenadora, tem os Hospitais de Almada e de Gaia como referência.
As autarquias envolvidas apoiam o projecto com a aquisição de equipamento que facilita os cuidados diários prestados aos utentes. Em seis meses de actividade há um óbito a registar. Aconteceu em Santarém, a uma senhora de 102 anos.