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Cabral, tempos depois
foto DR Beth Ritto

Cabral, tempos depois

Christiano era um português ateu. Um homem correto que acreditava na palavra como instrumento de compromisso e fé. Ao contrário de Cabral, ele nunca mais voltou à terra onde nasceu. Fez aqui a sua vida e constituiu uma nova família, casando-se com Dolores, uma espanhola muito católica. Minha mãe e minha tia nasceram brasileiras.

Quando Pedro Álvares Cabral deixou Lisboa, em 9 Março de 1500, também o Inverno se despedia do continente europeu. Na véspera, um domingo de céu azul e temperatura agradável, ouviam-se louvores, exaltações e chorosas despedidas nas proximidades do porto do Restelo.
No dia seguinte a população não arredou pé até as barcaças descerem o Tejo, em procissão desalinhada pelo movimento das águas, ao encontro das grandes embarcações que aguardavam no mar aberto.
Foram dias festivos, comemorando a nova investida rumo ao destino promissor, sina dos navegantes.
O pequeno Portugal crescia em direção ao Atlântico, pronto para alcançar outros territórios, aos poucos desenhando um novo mundo.
No século anterior os portugueses já haviam ampliado em muito os seus limites marítimos, mas o mar tenebroso ainda era um desafio. Aprimoradas invenções e os conhecimentos acumulados sobre mapas, estimulados pela Escola de Sagres, reunião de especialistas nos estudos de cartografia, astrologia, astronomia, promovida por D. Henrique, o Navegante, davam mais segurança e favoreciam a ousadia. Entretanto, eram imprescindíveis audácia e muita coragem para participar numa jornada daquelas.
O jovem fidalgo Pedro Álvares tinha 32 anos quando partiu em sua maior aventura. Era de família rica e com acesso à corte, mas podemos imaginar que tinha certamente uma alma inquieta, e terá sido essa inquietude que o levou a aceitar tamanha incumbência.
Numa segunda-feira, dia comum de trabalho, a armada composta por dez naus e três caravelas, levando perto de 1350 homens, toneladas de alimentos, apreensões e expectativas, zarpou para a grande viagem que mudaria a história de Portugal e de um país que tempos depois viria a se chamar Brasil.
Cabral deixou para trás um país em transformação, com marcas medievais e do domínio árabe, mas que já era referência na expansão marítima. Lisboa era uma cidade com cerca de sessenta mil pessoas espremidas em casarios distribuídos em ruas, becos e passagens estreitas, muito diferente da paisagem que ele iria encontrar quarenta e quatro dias depois, um novo paraíso continental.
A história oficial contada no Brasil sobre o descobrimento, até pouco tempo atrás, era apenas sob o ponto de vista do conquistador europeu. Uma injustiça com os que já viviam aqui, em nossas terras tropicais, e com os navegantes, que cruzaram oceanos para traçar novos mapas, revelar culturas, hábitos e desvendar caminhos, com todos os prós e contras das grandes aventuras humanas.
A primeira visão, depois dos sacolejos das marés, dos voos das gaivotas, das algas, do vento quente que vinha da Bahia, foi um monte que chamaram Pascoal, porque era domingo de Páscoa. Dois dias depois, no final da tarde de 22 de Abril de 1500, as embarcações atracaram próximo ao Monte Pascoal, em local que chamaram de Porto Seguro. No dia seguinte os portugueses despertaram para a primeira manhã tropical de suas vidas e se depararam com um cenário deslumbrante: areias brancas, águas límpidas e mornas, florestas densas repletas de aves e animais desconhecidos, além de frutos que nunca haviam visto. E, finalmente, grupos de índios nus, curiosos e interessados naqueles homens de pele branca, roupas pesadas, pouco apropriadas para o calor daquela terra, falando uma língua incompreensível e, como descobririam mais tarde, trazendo sonhos de riqueza, prosperidade e propriedade. Mais tarde, demonstrariam também força para ocupar o território.
E foi assim que os navegantes portugueses chegaram nesse imenso continente, até então praticamente inexplorado.
A terra avistada por Cabral no litoral da Bahia era bem diferente da que o meu avô encontrou ao chegar no Rio de Janeiro, quatro séculos depois.
Christiano de Azevedo nasceu no Porto, em 3 de Maio de 1881, na freguesia de Penafiel. Em 1900 deixou o trabalho no campo, a filha pequena e veio para o Brasil, não como um navegante aventureiro ou profissional, mas como um jovem de 19 anos que queria conhecer o mundo, trabalhar e viver uma vida diferente da que tinha no Portugal de então.
Desembarcou na capital da recente República brasileira e foi morar primeiro no Centro e depois em Botafogo, perto de onde o português Estácio de Sá fundou a cidade do Rio de Janeiro, no dia 1 de Março de 1565. Franceses haviam-se instalado em torno da Baía de Guanabara, pretendendo criar aqui a França Antártica, porém foram finalmente derrotados e expulsos pelos portugueses, depois de muita luta e sangue derramado. Tribos indígenas, habitantes originais da região, aliaram-se a portugueses e franceses, sem se darem conta das consequências futuras dessas batalhas.
Christiano acompanhou a mudança acelerada da capital, que apenas doze anos antes havia testemunhado a assinatura da lei Áurea, que libertava os escravizados, pela Princesa Isabel, filha do último Imperador do Brasil, D. Pedro II.
O Rio de Janeiro era, em 1900, uma representação cosmopolita do país. O porto da Praça Mauá era porta de entrada e saída de necessidades e expectativas. Ali perto ficava o Valongo, onde desembarcaram os maiores contingentes do mundo de negros escravizados.
As paisagens observadas por Cabral e Christiano, com um intervalo de quatrocentos anos, eram bem diferentes. O país do início do século 20 era brasileiro, português, africano e indígena.
A visita de Cabral foi curta. A descoberta de uma terra no meio do caminho da viagem programada para as Índias não empolgou muito a Corte portuguesa, já que especiarias e um mercado com mais opções de trocas eram mais valorizados. No dia 2 de Maio de 1500 a frota de Cabral retomou a viagem rumo à Índia. Antes da partida, foram celebradas duas missas que deixaram os nativos muito espantados com a cerimônia religiosa cristã. A terra descoberta recebeu o nome de Vera Cruz.
A pimenta do reino se deu muito bem abaixo da linha do Equador, mas só mais tarde foi plantada aqui. Na época, o valor da pimenta e de outras especiarias era tão grande que elas eram parte do pagamento da tripulação da armada de Cabral, assim como de outras expedições. Especiarias eram usadas sobretudo na preservação dos alimentos.
Como chefe militar da missão, Cabral poderia comprar quinhentos quintais de pimenta, equivalente a três toneladas, e vender para a Coroa a preço de mercado em Lisboa. Um belíssimo negócio para a época.
Christiano era um português ateu. Um homem correto que acreditava na palavra como instrumento de compromisso e fé. Ao contrário de Cabral, ele nunca mais voltou à terra onde nasceu. Fez aqui a sua vida e constituiu uma nova família, casando-se com Dolores, uma espanhola muito católica. Minha mãe e minha tia nasceram brasileiras.
A filha Maria e uma pequena quinta que deixou em Penafiel ficaram na saudade do imigrante.
Pedro Álvares Cabral, nascido em Belmonte, entre 1467 e 1468, era de uma linhagem de fidalgos. Morreu em 1520, na cidade de Santarém, onde está seu túmulo. Não viu os resultados de sua descoberta, feita em uma viagem que contribuiu para mudar o rumo da História.
Quinhentos anos depois de sua morte, o mundo está cada vez mais conectado, por céu, mar, terra, e ocasionais pandemias.
Nada, em tempo algum, ultrapassa a bravura de quem se lança ao desconhecido, cruza mares e oceanos para descobrir, descobrir-se.
Eram assim os navegantes, são assim as pessoas que acreditam que navegar é preciso. O salgado mar segue chamando para o seu profundo azul.

Beth Ritto
Elizabeth Ritto
Jornalista, roteirista e escritora
Brasileira, do Rio de Janeiro, trabalhou no Grupo Globo, como produtora, editora e roteirista; Participou da equipe de implantação do Canal GNT e criou o Brasil Documenta, evento internacional sobre a produção de documentários; Autora de Arpoador, meu Amor, Cariocas Exemplares, entre outros e O Rio de Ernesto Nazareth, com lançamento em Lisboa, no Círculo Eça de Queiroz; Criação e direção do projeto Pessoa, por brasileiros, em 2011. Um trabalho que reuniu, em vídeo, vários artistas brasileiros interpretando obras do poeta português, um dos mais lidos no Brasil. Uma parceria com a Casa Fernando Pessoa; Direção e roteiro do vídeo Vidas Embarcadas, inédito; Atualmente participa de roteiros e séries para TV e produção de livros.

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