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Meu Pedro Álvares Cabral 
foto DR Eliezer Moreira

Meu Pedro Álvares Cabral 

O comandante Cabral fez história, mas também a sofreu, como qualquer um de nós. Consta ter sido preterido pelo rei e morrido no ostracismo. Assim, o injustiçado homem que uniu quatro grandes continentes havia de gostar de saber que uma estátua sua, em São Paulo, traz esta inscrição que é um preito de reconhecimento do Brasil pela grandeza do seu feito: “Os brasileiros devem tudo a Portugal”.

Aparentemente, dado o seu tamanho, Pedro Álvares Cabral são muitos, e cada um tem o seu. Vou falar aqui do meu. Para o brasileiro que ora escreve, a celebração dos 500 anos da morte do grande navegante e explorador luso é assunto no qual se pode entrar por duas portas. A primeira, larga e generosa, leva a um memorialismo docemente sentimental associado ao meu tempo dos bancos escolares. Esta é a porta da imaginação ou da emoção. A segunda, mui apertada e severamente judicativa, se abre para os caminhos imponderáveis e, muitas vezes, cruéis, na história das relações entre Portugal e Brasil. Esta é a porta da razão. A da História, propriamente dita.
Vamos à primeira delas. O Cabral que conhecemos dos bancos escolares, de boina e barba, com a alva gola rendada do gibão, tem a dimensão das personagens míticas cuja fisionomia foi inventada por algum artista de ocasião. Sabemos que seu rosto, como o de Jesus Cristo, de Cleópatra ou o de Tiradentes, é uma criação imaginária. E assim como seu rosto foi idealizado, os feitos desse homem parecem também idealizados nas narrativas escolares.
Era esse o Pedro Álvares Cabral que eu adolescente trazia no bolso, para comprar meu clandestino maço de cigarros da marca Continental. Lá estava ele, na nota de mil cruzeiros. De um lado da cédula, o azul, se via seu retrato, e no verso, cor de abóbora, a cena da primeira missa no Brasil, reproduzida do quadro famoso de Víctor Meirelles.
Parece que os brasileiros nunca estiveram tão íntimos de Cabral como nesse período, entre os anos 40 e 70 do século passado, quando seu rosto esteve estampado em cédulas que iam de mão em mão. Primeiro, na cédula de cruzeiro. E, a partir de 1967, tendo a inflação corroído seu valor, passou o homenageado a figurar na cédula do “cruzeiro novo”, a moeda resultante de uma maquiagem providencial que o governo chamou de reforma monetária.
Como se dizia na época, pagar “meio Cabral” por um quilo de pão e, com o passar dos anos, “um Cabral”, e, por fim, até “dez Cabrais” pelo mesmo quilo de pão, era a expressão cotidiana de nossa intimidade com o descobridor do Brasil. Essa intimidade não deixava de exprimir também a eterna desilusão nacional para com a fragilidade da nossa moeda, que ainda ia sofrer muitas reformas e mudar de nome outras vezes até a chegada do real – que, por sua vez, começa a periclitar.
Vamos à segunda porta, a da História. Uma vez que tudo, ou quase tudo, nas relações entre Brasil e Portugal, principia com Cabral, é natural que ele viesse a ocupar, na história dessas relações, um lugar que não é apenas sentimental.
Sabe-se que, ao partir com suas naus para a Índia, retomando a rota da qual teria se desviado para “descobrir” o Brasil, Cabral deixou, em terras tupiniquins, dois degredados. Depois de haver feito rezar uma missa na então Terra de Vera Cruz, e nela deixar dois guardiães, a posse ficou solidamente legitimada.
Com a posse, veio a história e seus horrores. O interesse de Portugal pelo território recém-achado só começa 32 anos após a descoberta, quando se instala na nova terra a primeira colônia. A exploração econômica não se desenvolve nem prospera de fato senão a partir dos séculos 16 e 17, com a vinda da mão-de-obra escrava de África e a descoberta do ouro. No auge da exploração, em 1790, a produção chegava a 15 toneladas por ano. Muito se matou e se esquartejou pelo ouro. Mas não é o caso de se atravessar, aqui, essa porta de horrores. Uma coisa é a História e aqueles que a fazem. Outra, bem distinta, são aqueles que a vivem e sofrem.
Certamente, é entre esses homens e mulheres que a vivem e sofrem que nós vamos encontrar os muitos que estabeleceram relações fraternas e duradouras entre os dois países, a partir de uma língua comum. Não é por outra razão que a maior colônia de portugueses, fora de Portugal, está no Brasil, e a maior de brasileiros, fora do Brasil, vive em Portugal. E Cabral, o Pedro Álvares, naturalmente (não confundir com certo governador do Rio de Janeiro, que desonrou o antigo e valoroso nome), tendo vivido seus últimos anos em Santarém, a nobre Santarém do Ribatejo, ia gostar de saber que existe no Brasil, na região Norte, uma cidade homônima, a Santarém do Pará, a chamada “Pérola do Tapajós”, em referência ao rio que a percorre. De resto, o Pará tem também sua Belém. E também sua Alenquer, Óbidos, Ourém, Vigia e Bragança. Soam familiares, todos esses nomes?
O comandante Cabral fez história, mas também a sofreu, como qualquer um de nós. Consta ter sido preterido pelo rei e morrido no ostracismo. Assim, o injustiçado homem que uniu quatro grandes continentes havia de gostar de saber que uma estátua sua, em São Paulo, traz esta inscrição que é um preito de reconhecimento do Brasil pela grandeza do seu feito: “Os brasileiros devem tudo a Portugal”.
Por fim, cabe corrigir aquela distinção absoluta entre razão e emoção. Porque, em algum ponto do tempo, aquelas duas portas, a do sentimento, assim como a estreita e fria porta da História, vão nos levar, afinal, ao mesmo destino comum e sabido. Assim, é possível imaginar Pedro Álvares Cabral, na calma dos seus dias em Santarém, com o coração livre de ressentimentos, antecipando aquilo que ainda ia escrever, anos depois, o nosso vate:

“No mar tanta tormenta, e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme, e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?”.

Elizer Moreira
Roteirista, escritor, jornalista.

Meu Pedro Álvares Cabral 

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