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Visibilidades e invisibilidades de “seu” Cabral
Gilda Santos

Visibilidades e invisibilidades de “seu” Cabral

Também a partir do Real Gabinete, à frente do seu PPLB - Polo de Pesquisas Luso-Brasileiras já lá vão 20 anos, posso contemplar com olhar crítico, sob a égide de Cabral, as oscilações desse diálogo complicado entre os dois países, feito de enlaces e desenlaces, enaltecimentos ou rasuras, segundo sopram os ventos político-ideológicos, os oportunismos ou as teorias em voga.

“Quem foi que inventou o Brasil?/ Foi ‘seu’ Cabral!/ Foi ‘seu’ Cabral!/ No dia 21 de Abril/ Dois meses depois do Carnaval” é o refrão da marchinha “História do Brasil”, de Lamartine Babo, retumbante sucesso carnavalesco no Rio de Janeiro de 1934, com seus versos galhofeiros e cheios de nonsense, como era hábito nesse gênero musical. Cantada Brasil afora e até hoje nos festejos momescos, insere a personagem histórica numa tipologia de proximidade afetiva similar às figuras urbanas do “Seu Manuel da padaria”, ou do “Seu Joaquim do botequim”, unanimemente reconhecidas.
A confusão de datas, que a marchinha denota, parece perseguir o grande feito de Pedro Álvares Cabral, posto que, desde 1817, quando foi reencontrada a carta ao Rei D. Manuel assinada pelo escrivão Pêro Vaz de Caminha, há a garantia de que a frota portuguesa aportou a 22 de Abril de 1500 na terra que, depois de outros, viria a ter o nome de Brasil. No entanto, o feriado nacional instituído pela República recuperava o suposto dia 3 de Maio e assim a celebração perdurou até 1930, quando foi extinta por Getúlio Vargas. De lá para cá, o acontecimento, o herói e sua data fundacional repousam esquecidos nos compêndios de História e só esporadicamente vêm à ribalta.
Em termos de grande alcance popular, o nome de Cabral voltou à circulação nos anos 60, quando as rotas da VARIG entre aeroportos brasileiros e capitais europeias faziam escala em Lisboa, por insuficiência de autonomia para voos diretos, e a companhia aérea lançou um jingle radiofônico, a “cumprimentar carinhosamente a laboriosa comunidade luso-brasileira”, na voz da fadista Hilda de Castro em duo com cantor não identificado. Rentabilizando o sucesso, a publicidade sonora foi acoplada a um desenho animado para a TV, com um simpático Cabral que caiu no gosto do público e hoje pode ser recuperado no YouTube:
(a fadista-narradora:) “Seu” Cabral vinha navegando/ quando alguém lá foi gritando/ – Terra à vista! // Foi descoberto o Brasil! // A turma gritava: Bem-vindo “Seu” Cabral!
(o cantor-Cabral:) – Escreve aí, ó Caminha, para o nosso querido Rei, que a terra é linda e generosa, que é gente muito bondosa.
(a fadista-narradora:) Mas Cabral sentiu no peito/ Uma saudade sem jeito...
(o cantor-Cabral:) Volto já p’ra Portugal / Quero ir pela VARIG!
Depois, foi preciso esperar o ano 2000 e as controversas comemorações do “encontro de culturas” para que Pedro Álvares Cabral, emblema primordial desse quinto centenário, recuperasse alguma visibilidade nesta margem do Atlântico.
Pouco antes, em 1999, numa espécie de preparação para a efeméride, o livro Nau Capitânia – Pedro Álvares Cabral – Como e Com Quem Começamos, uma biografia romanceada do navegador escrita pelo jornalista riograndense Walter Galvani, alcançou enorme êxito, com reedições sucessivas, graças a algumas semanas na lista dos “mais vendidos”.
Já no transcurso dos eventos, enquanto as discussões eivadas de lusofilia e lusofobia se acirravam entre intelectuais, no Carnaval do Rio – sempre o Carnaval! – as escolas de samba uniram-se em torno do tema histórico. Sagrou-se como campeã a Imperatriz Leopoldinense, que desfilou sob o tema-enredo “Quem descobriu o Brasil foi Seu Cabral”, cuja inspiração a mestra-carnavalesca Rosa Magalhães colheu precisamente nos versos caricatos do compositor Lamartine Babo.
Nesse mesmo ano, o nobre mareante reapareceu com incalculável frequência ante os olhos e nas mãos dos brasileiros, visto que sua efígie foi estampada na cédula monetária de “10 reais”, em uso até 2006. Muito antes, ilustrara as notas de “1.000 cruzeiros”, lançadas em 1949 e convertidas, a poder de drástico carimbo, em “1 cruzeiro novo” na reforma monetária de 1967. (Forte perda de status sofreu o fidalgo!)
Se o “brasileiro médio” (que não será muito diferente do “português médio”…) pouco sabe de Cabral além da façanha náutica, menos saberá que sua morte perfaz 500 anos neste pândemico 2020 e que, além da sóbria tumba na Igreja da Graça, em Santarém, há “resíduos mortais” do capitão-mor na antiga Sé do Rio de Janeiro, graças a tratativas do Imperador Pedro II. Com efeito, esse outro quinto centenário corre em silêncio e não mereceu matérias nos jornais, nas revistas, nos programas televisivos... Tangencialmente ligada a ele, a única notícia, algo inusitada, deveu-se ao deputado federal Luiz Philippe de Orléans e Bragança, que propõe a implantação do dia 22 de Abril como feriado nacional, revogando o do dia anterior, o “Dia de Tiradentes”, a fim de evitar folgas contíguas. O parlamentar, que é herdeiro da família imperial brasileira, afirma em seu projeto de lei que “essa data possui uma legitimidade histórica e relevância na constituição de nossa identidade nacional, razão pela qual deve ser considerada feriado em todo o país”. Como seria de prever, não faltam críticas ao apagamento do dia da morte do “mártir da independência” para que se lancem mais luzes sobre o dia da “descoberta”. Uma historiadora mineira ironizou: “Quer dizer então que o descendente de Dona Maria I, a Louca, responsável por dar a ordem do enforcamento, continua perseguindo Tiradentes 228 anos depois?”. Mas, enfim, por conta da pandemia, o projeto tramita lentamente…
Mais difundido pela mídia em Portugal, do que no Brasil, foi o comentário de Bolsonaro, há poucos meses, logo que foi exibida ao público, a nota de “200 reais”, ilustrada por animal nativo: “Alguns criticaram o lobo-guará. Essa cédula leva um ano para ser preparada, e ela já estava preparada. Logicamente, se tivéssemos mais tempo, começaríamos uma nova família de cédulas, como no meu tempo de garoto. Personalidades, como Pedro Álvares Cabral, D. Pedro [o I do Brasil e o IV de Portugal] e tantos outros que fizeram história no Brasil”. A ver vamos…
De minha parte, vinculada que estou ao icônico Real Gabinete Português de Leitura, não me faltam lembretes visuais sobre o aristocrata de Belmonte. Logo na fachada do prédio neomanuelino, ao lado das estátuas do Infante D. Henrique, de Vasco da Gama e de Camões, lá assoma a de Pedro Álvares Cabral. No interior do edifício, as mesmas personagens reaparecem na soberba peça de ourivesaria em prata, marfim e esmalte, que celebra as navegações portuguesas sob o título de “Altar da Pátria”. No teto do salão da Biblioteca, num dos quatro ângulos à volta da majestosa claraboia, vê-se o medalhão com o retrato de Cabral. Já na “Sala da Diretoria”, logo atrai o olhar dos visitantes a tela “O Descobrimento do Brasil”, de José Malhoa, datada de 1907, na qual o pintor pretendeu fixar o momento em que o capitão-mor, pilotos e marinheiros, alinhados em diagonal sobre o convés da nau capitânia, olhavam fixamente o horizonte e “houveram vista da terra”. A mesma sala abriga a maquete do monumento a Pedro Álvares Cabral, doada ao Real Gabinete pelo próprio autor, Rodolfo Bernardelli.
Esse grupo escultórico em granito, bronze e cobre foi inaugurado no Rio, no Largo da Glória (onde ainda se encontra), em 1900, pela “Associação do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil” e mereceu uma réplica perfeita que foi oferecida por Getúlio Vargas ao governo português em 1940, aludindo à Restauração, e situa-se diante do Jardim da Estrela, em Lisboa. Outros monumentos que celebram Cabral, ou o “achamento”, encontram-se espalhados por todo o Brasil, mas nenhum supera em harmonia e técnica os gêmeos do Rio e de Lisboa. Muito digna, a indispensável estátua de Cabral em Porto Seguro integra o circuito turístico obrigatório da chamada “Rota do Descobrimento”, no litoral sul da Bahia, distinguida como “Patrimônio Natural Mundial” pela UNESCO.
Também a partir do Real Gabinete, à frente do seu PPLB - Polo de Pesquisas Luso-Brasileiras já lá vão 20 anos, posso contemplar com olhar crítico, sob a égide de Cabral, as oscilações desse diálogo complicado entre os dois países, feito de enlaces e desenlaces, enaltecimentos ou rasuras, segundo sopram os ventos político-ideológicos, os oportunismos ou as teorias em voga. Certo é que “Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal”, como disse Fernando Pessoa, o desembarque da frota cabralina na costa baiana, desvelou a ponta do iceberg deste país continental, destes inumeráveis “brasis” de que o Brasil é composto. E se o seu capitão-mor foi obscurecido ao longo dos tempos, secundarizado face a Vasco da Gama e relegado a perdidas memórias escolares, só resta esperar que, tal como aconteceu, acontece e acontecerá a tantos ilustres portugueses, novos tempos lhe façam justiça. Ora, pois!

Gilda Santos
Gilda Santos é Professora aposentada da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde criou a Cátedra Jorge de Sena (1999). Vice-Presidente Cultural e do Centro de Estudos do Real Gabinete Português de Leitura, aí instituiu (2001) e coordena o PPLB - Polo de Pesquisas Luso-Brasileiras. Difundindo a obra de Jorge de Sena ou focalizando temas das relações luso-brasileiras, é autora de numerosos ensaios e organizadora de vários eventos e publicações, sendo a mais recente a antologia Não leiam delicados este livro – 100 poemas de Jorge de Sena (Rio, Ed. Bazar do Tempo, 2019).

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