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“Santarém é uma cidade muito bonita mas pouco valorizada”
Sandra Lopes exerce arquitectura há 23 anos e é dinamizadora cultural e membro dos Urban Sketchers do Ribatejo

“Santarém é uma cidade muito bonita mas pouco valorizada”

Entrevista com a arquitecta Sandra Lopes que voltou às origens devido à pandemia mas também às raízes familiares em Santarém. Sandra Lopes ajudou a organizar recentemente na cidade uma iniciativa que veio para ficar. A conversa foi pretexto para falarmos do que é trabalhar e viver nos centros históricos das cidades.

Sandra Lopes, 41 anos, arquitecta de profissão há duas décadas, desenvolve a sua actividade em Cascais. Por razões familiares, e da pandemia, desde há dois anos que mudou a sua residência para Santarém embora continue a trabalhar em Cascais. Sandra Lopes não quer ser só mais uma moradora do centro histórico de Santarém mas também uma dinamizadora cultural; ligada a um grupo de 'sketchers', começou por dinamizar, no dia 11 de Setembro, um workshop que reuniu sketchers de Santarém mas também de outras localidades do país. O encontro foi um êxito e teve a colaboração de empresas e associações da cidade. Sandra Lopes aproveitou a conversa para desafiar O MIRANTE a propor um tema para que numa próxima iniciativa os Urban Sketchers do Ribatejo possam fazer uma parceria com o jornal de forma a divulgar a sua actividade e o projecto de trazer para a região pessoas de todo o país que gostem de desenhar, ou aprender a desenhar, e queiram conhecer melhor o Ribatejo.

Em discurso quase directo Sandra Lopes elogia a postura da grande maioria dos sketchers que, regra geral, desenham sem preocupações comerciais, pelo gosto de criarem, pelo prazer de conhecerem e darem a conhecer o país onde vivem e, acima de tudo, para mostrarem que a arte do desenho pode ser uma actividade mais acessível do que parece à primeira vista. Basta que as pessoas se integrem, percebam que estão entre iguais; uns que sabem mais que outros, mas a grande maioria sem a preocupação, que é um dos lemas dos sketchers, de não copiarem a realidade. Mesmo para os arquitectos, que estão em bom número no grupo dos sketchers em Portugal, o desenho nestas iniciativas é totalmente livre das responsabilidades e das pressões que a profissão exige. Não há errado nem certo no desenho. Cada um faz a leitura que quer e como quer. Ao contrário da pintura ou do desenho a partir de fotografias, os sketchers procuram inovar desenhando de forma muito personalizada sem corresponder aos padrões. Até para quem é profissional de arquitectura ou de engenharia a actividade permite exercícios que podem ser uma preparação para outros trabalhos bem diferentes dos objectivos lúdicos.

Voltando a Santarém, e à actividade dos Urban Sketchers do Ribatejo, Sandra Lopes diz que quer continuar a primeira experiência de Setembro ligada à água e explorar ainda mais o património da cidade com a colaboração da empresa Águas de Santarém e do Centro Cultural Regional, que são dois dos parceiros do grupo. Mas os projectos futuros incluem, para já, a mobilização de uma maior comunidade. Fazer a rota dos miradouros da cidade é um dos próximos projectos porque o centro histórico de Santarém pode não estar tão conservado como gostaríamos mas é muito rico e proporciona bons momentos de inspiração.

O que é que o Sketchers fazem aos desenhos de cada jornada?

Sandra Lopes responde como se a pergunta já tivesse barbas; a maioria publica nas suas páginas pessoais na internet e assim satisfaz e enriquece o diálogo com os amigos. Outros oferecem; outros ainda guardam simplesmente para perceberem a sua evolução, para se estudarem, para se avaliarem. Quando são eventos patrocinados por organismos oficiais digitamos os nossos melhores desenhos e alguns poderão ser seleccionados para exposições itinerantes que servem para as autarquias promoverem o seu património.

Sobre os seus desenhos Sandra Lopes diz que guarda a maior parte deles porque os cadernos onde desenha servem como memória do seu percurso artístico, mas também dos lugares por onde viajou. Em jeito de balanço afirma que está satisfeita com a actividade que já conseguiu implementar na cidade de Santarém e que espera, a curto prazo, fazer parcerias com outras cidades de forma a mobilizar scketcheres de todo o mundo para conhecerem Santarém e o seu centro histórico. Santarém é uma cidade muito bonita e pouco valorizada e frequentada como merece, sublinha.

“É uma odisseia viver nos centros históricos”

Fale-me de Santarém como arquitecta. É difícil fazer obras numa cidade com muitas casas em ruínas e com regulamentos muito exigentes até para pintar uma frontaria quanto mais para fazer obras de recuperação?

Exerço arquitetura há 23 anos. Trabalhei em várias zonas do país e isso vai-me dando uma sensibilidade para o que são as necessidades das pessoas e o cumprimento dos regulamentos. O licenciamento das obras urbanísticas é lento em todos os países, mas todos temos a expectativa que se vai resolver em um ou dois meses. Nunca é assim. Mal ou bem, os prazos são muito mais dilatados. As câmaras municipais são entidades com quem temos de trabalhar e por norma fazem-no de uma forma lenta. Fazer a análise de um projecto não é um procedimento rápido e queremos tudo para ontem. Por outro lado, há necessidades, sobretudo nos centros históricos, que não podemos ignorar. Seja pintar uma fachada, mudar uma cobertura, às vezes até fazer obras necessárias para o conforto das pessoas. Se as câmaras não conseguem agilizar os processos, em primeiro lugar perdemos investidores. Um investidor chega a Portugal e ninguém lhe sabe dizer quanto tempo é que precisa de esperar. Podia fazer um plano de investimento a 5 ou 10 anos, mas se ninguém diz quanto tempo demora ele desiste de investir num centro histórico, o que origina a degradação. Por outro lado se permitíssemos que as pessoas fizessem o que querem não tínhamos centros históricos ou estavam descaracterizados. Morar num centro histórico de uma cidade é uma odisseia. É preciso encontrar um ponto de equilíbrio entre o tempo que as coisas levam e o tempo da aprovação. Todo o processo é lento e caro. Portugal não é um país rico, daí as dificuldades serem ainda maiores. A habitação nos centros históricos por norma não é luxuosa. Isto cria problemas acrescidos. Porque é que vou gastar tanto dinheiro a recuperar uma casa se posso comprar fora do centro histórico e fico com o meu problema resolvido em um mês?

Mas há concelhos onde as coisas são mais fáceis que noutros?

Em termos de urbanismo cada concelho é quase um país. Há uma lei nacional mas há várias adaptações. O que também faz sentido porque cada concelho é uma realidade diferente. Mas devia haver uma maior uniformização de procedimentos. Um arquitecto que queira trabalhar em Santarém, Almeirim, Lisboa ou Cascais tem que estudar uma quantidade enorme de 'modus operandi' para cada realidade, o que não faz sentido nenhum. A lei é a mesma e uma casa é uma casa. Falo de questões burocráticas que muitas vezes são o maior problema. Não há parte técnica sem a parte burocrática. Uma sem a outra não conduz à licença. É isso que tem que ser bem dirigida pelas autoridades para que as pessoas depois não percam tempo com burocracias. Há câmaras que são referência. Cascais é uma delas. Disponibiliza um pacote de informação muito rigoroso. Lê-se aquilo tudo e seguindo aquelas regras está tudo certo para ser aprovado. A administração pública, nos últimos dez anos, melhorou a transparência a nível do urbanismo. Hoje já conseguimos saber, devido a essa evolução, por onde o processo andou durante o tempo que esteve para aprovação. As coisas estão a mudar, mas ainda faltam alguns passos importantes para ficar a um nível razoável.

Fale-me de Santarém.

É uma cidade com um potencial enorme. Precisa de ser mais conhecida porque estamos a 50 quilómetros de Lisboa. Tem os problemas de todas as outras por causa da mudança de uma janela ou de um simples caixilho de madeira para alumínio. Santarém é uma cidade muito pendular. As pessoas vivem aqui mas trabalham fora. E isso também cria necessidades e dificuldades diferentes. Quem vive no centro histórico quer conservar as suas casas mas os materiais estão cada vez mais caros e nem sempre é possível usar os mais baratos por causa das tais exigências que obrigam à preservação do património.

O comboio lá em baixo na Ribeira de Santarém é uma vantagem?

Seria mais se houvesse transportes para a cidade. Para uma pessoa ir de comboio para Lisboa tem que levar o carro para a estação, que fica lá parado o dia todo quando podia servir para outros membros da família. Chegar a Lisboa é fácil. Agora falta resolver o resto.

A arquitectura é uma profissão que dá muito dinheiro e fama?

A boa arquitectura é sóbria e discreta. Este é o meu posicionamento, mas há outras maneiras de abordar a profissão. O arquitecto além de ser um técnico tem que ser um burocrata. Tem que falar a mesma linguagem dos técnicos das autarquias. É raro acontecer termos um cliente que diz “tenho dinheiro e quero que faça um bom projecto”. As obras não são dos arquitectos ou dos engenheiros; são das pessoas que as encomendam. Quanto mais culta e mais informada a pessoa que encomenda melhor se reúnem as condições para que essa arquitectura possa ser diferente.

É difícil fazer arte trabalhando na arquitectura?

Em tempos passados era uma profissão muito elitista. O mundo mudou e hoje a profissão está mais democrática. Dantes era assim: se o meu pai é arquitecto eu também vou ser. Hoje em dia temos muitos arquitectos que nunca tiveram uma ligação familiar à arquitectura. Essas pessoas têm um tempo de formação diferente de quem acompanha a profissão e as dificuldades desde sempre.

Já houve projectos em que se sentiu artista?

Sim, já houve projectos que me deram mais liberdade para ter uma abordagem inovadora. Não digo artística porque tem um peso que nem sempre é bem compreendido.

Mas temos arquitectos que são reconhecidos a nível mundial e edifícios por todo o mundo que são obras de arte.

Essa não é a arquitetura do dia-a-dia, aquela com que lidamos todos os dias e ganhamos a vida e fazemos progredir o país. É um trabalho de uma equipa multidisciplinar, às vezes mais do que um arquitecto e de vários engenheiros. Não só para cumprir o quadro regulamentar que existe porque ninguém pode dominar todas as áreas. Também pela dimensão e quanto maiores mais exigentes se tornam. Para fazer uma moradia tenho que ser eu e mais três engenheiros. É o mínimo dos mínimos. Não se faz com menos que isso. Imagine se mudarmos a escala para edifícios, como museus, hospitais ou aeroportos. Claro que gostava de receber uma encomenda em que pudesse ter uma maior liberdade criativa. Quem não gostaria? Mas não é o meu foco.

Gosta de touradas?

Gosto, mas não sou aficionada.

Mergulhou no Tejo quando era menina?

Sim. E há pouco tempo fomos fazer canoagem e também mandámos uns mergulhos.

É ribatejana ou acha isso uma treta?

Tenho definitivamente uma grande costela ribatejana.

Vai mais às Maldivas ou a Estocolmo e a Paris ou Madrid?

Mais Europa do que destinos longínquos e destinos mais culturais do que de praia.

Procura visitar as cidades da Europa também por razões profissionais?

Sim, até porque a Europa é muito rica, temos muita coisa, até em Portugal. Às vezes viajamos para outros lugares e Portugal tem melhor do que fomos ver lá fora.

Quando anda a viajar transporta, no seu imaginário, os lugares por onde anda para o seu lugar de origem?

É quase impossível não estabelecermos associações entre o que vemos e o que está na nossa terra-mãe. Ando sempre acompanhada pelo meu caderno.

É fácil conversar, fazer amigos, ter vida social em Santarém?

Santarém é uma cidade muito fechada. Percebemos que existe nas pessoas a preocupação com o que os outros pensam delas. Associo isso a um meio mais pequeno que Santarém. Quem sabe o processo de mudança já esteja mesmo no fim.

Quando viaja não sente vontade de ficar? Não lhe apetece dizer “é aqui que eu devia viver”?

Este Verão estive em Málaga e lá sente-se essa atmosfera. Uma pessoa vai na rua e percebe que está ali uma coisa diferente. É a abordagem multicultural, essa sensação mais cosmopolita que não se sente noutros lugares.

Discurso directo

Um dia estava a desenhar num café em Turim, Itália, e uma criança colocou-se muito atentamente a olhar para o meu desenho; a certa altura virei-me para o menino e comecei a desenhá-lo. Ele ficou muito quieto, a família juntou-se à volta e no fim quiseram comprar o desenho, que eu ofereci. O desenho é uma linguagem universal. Comunica por si e atrai as pessoas. Não conheço ninguém que não goste de desenhos.

“Santarém é uma cidade muito bonita mas pouco valorizada”

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