Três Dimensões | 05-02-2023 10:00

“Falta tudo nos hospitais porque há má gestão e falta de programação”

“Falta tudo nos hospitais porque há má gestão e falta de programação”
TRÊS DIMENSÕES
Cardiologista Luís Nuno é um rosto conhecido de Vila Franca de Xira que trabalhou durante mais de três décadas no hospital da cidade

Luís Nuno, 67 anos, médico cardiologista, Vila Franca de Xira

Luís Nuno acredita que a medicina é uma missão de vida. Nesta conversa com O MIRANTE partilha algumas memórias das mais de três décadas que passou ao serviço no Hospital de Vila Franca de Xira. Diz que a falta de médicos é um problema grave causado por uma “gestão à moda do merceeiro” que não acautelou o futuro. Ainda dá consultas para se manter activo e não lhe falta procura. Ouvir música, ler, estar com a família e os netos são as suas maiores paixões.

Vivemos numa Era maravilhosa e nunca como agora prolongámos tanto a vida. Sou de Faro mas vivo em Vila Franca de Xira (VFX). Aos 17 anos vim para Lisboa para fazer o curso de Medicina. Depois fui fazer os então chamados policlínicos para Santarém e em 1991 vim fazer a especialidade de Cardiologia em VFX e aqui fiquei. Quando me reformei, em Agosto do ano passado, ainda estava com a cabeça em condições para não ficar em casa sem fazer nada. Parar é morrer. Decidi fazer algumas horas em clínicas para ajudar quem precisa e também para me manter ocupado. Em VFX estou na Lusoxira, mas também já respondo a outras solicitações.
Trabalhei sempre em exclusividade com o Hospital de VFX e nunca tive uma clínica. Gosto de ser médico e sempre encarei a profissão de médico como uma missão. O meu avô e bisavô já eram médicos e a paixão vem de família. A cardiologia é das especialidades mais nobres da medicina. O coração manda em tudo. É muito gratificante reanimar um doente e prolongar-lhe a vida. Os maus tratos destroem mais o coração do que o amor ou o trabalho. A má alimentação, tabaco, álcool, falta de exercício, o stress e o sedentarismo são terríveis. Mais tarde ou mais cedo pagamos o preço.
Assim que nascemos o coração começa a sofrer. Mais do que nunca é fundamental fazer exames regulares. A partir dos 50 anos qualquer pessoa devia fazer no mínimo um electrocardiograma e análises para avaliar os níveis de colesterol. Se fizer exames preventivos aos 40 anos provavelmente não encontra nada e está tudo bem. Aos 60 garanto-lhe que aparecem. Ou a pessoa começa a prevenir o avanço dos problemas cedo ou ao chegar aos 70 é quase certo que terá dificuldades. Nunca chorei por causa de um doente. Já salvei muitos e perdi outros. Consigo sofrer para dentro e não demonstrar, mesmo nas situações em que temos de encarar os familiares e dar as más notícias.
Todos temos o tempo contado. A vida tem um princípio, meio e fim. Não somos nós que a damos ou tiramos, apenas ajudamos a dar melhor qualidade de vida. Nas reanimações auxiliamo-nos de meios terapêuticos para salvar uma vida, mas se formos racionais sabemos que não nos cabe só a nós. O destino marca mais do que o que podemos ou não fazer. O que me encanta neste trabalho é a relação com o ser humano e ouvir os elogios de quem conseguiu continuar a viver graças à minha intervenção. Um dos casos que mais me marcou foi um senhor que vi no antigo Hospital Reynaldo dos Santos que estava na sala de reanimação. Ele estava a ser reanimado por colegas e vi que estava muito complicado. Olhei para os monitores e vi que ele não ia morrer. Investi nele tempos infinitos. A certa altura fez uma convulsão e pegou. Teve um enfarte tremendo. Foi para Lisboa fazer um cateterismo e conseguiu continuar vivo. Ainda hoje ele anda na cidade e bem. Fico muito feliz.
Os miúdos de 30 anos não têm nada a ver com a minha geração. Se for preciso estão aqui num dia e em Berlim no outro. Não são apegados ao trabalho nem à família. Vivem muito rapidamente e isso faz com que não ganhem apego às pessoas e à terra onde vivem. Apesar de tudo tenho de confiar nas pessoas que me vão tratar num hospital se precisar. Quando uma pessoa entra num hospital se não confia em ninguém está tramado.
O problema actual de falta de médicos é gravíssimo. Nos hospitais falta tudo hoje em dia porque há má gestão e falta de programação. Todo este país é gerido à moda do merceeiro. Alguém devia ter previsto que agora ia haver uma falta grave de médicos devido às aposentações. A nossa ordem profissional também tem culpa. Vejo o futuro muito negro e vamos passar por estas dificuldades durante cinco anos ou mais. Formar um bom médico especialista demora quase 20 anos.
Fui estrear o Hospital de VFX com a gestão do Grupo Mello e quando veio a nova administração pública, como estava com idade para a reforma, decidi sair. Estávamos com grande ansiedade de ter um hospital novo porque o antigo era uma barraca. Todos delirámos quando passámos para o edifício novo. A gestão do Grupo Mello foi excepcional: havia programação, controlo de custos e sobretudo muito controlo de qualidade, com auditorias anuais da Joint Commission International entre outros, dando uma garantia de uma medicina com qualidade e segura. Na administração Mello havia diálogo e não havia portas fechadas. Os administradores trabalhavam num espaço aberto. Depois isso acabou. É triste para quem, como eu, viveu os dez anos de Parceria Público-Privada estar a ver o estado a que isto chegou.
Gostava de ver os meus dois netos a progredir na vida. Irrita-me a falta de verdade. Não tenho vícios secretos. Estou a compilar poemas do meu avô para os editar em livro. O doutor Google é péssimo. As pessoas pensam que já sabem tudo antes de irem ter com o médico.

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