Três Dimensões | 23-05-2023 07:00

“Temos de olhar para os mais velhos de outra forma”

“Temos de olhar para os mais velhos de outra forma”
TRÊS DIMENSÕES
Rufino Madruga foi inspector da Polícia Judiciária e diz sentir-se feliz por viver em Vialonga

Rufino Madruga, 78 anos, dirigente associativo, Vialonga.

Nascido no concelho de Mourão, serviu na Guerra do Ultramar e escolheu comprar casa em Vialonga quando se tornou inspector chefe da Polícia Judiciária. O crime que mais o chocou foi a morte de uma criança por uma bomba das FP25. Diz que nas terras pequenas se deve votar nas pessoas e não nos partidos. O seu maior sonho é continuar a viver com saúde e é um rosto conhecido na localidade por estar envolvido na direcção da Associação dos Dadores de Sangue de Vialonga e dos bombeiros voluntários. O pior que um reformado pode fazer é passar os dias em frente à televisão, diz.

Comecei a trabalhar aos 14 anos na agricultura. O meu pai tinha uma oficina de sapataria mas nenhum dos filhos quis seguir a profissão de sapateiro. Acabei por dedicar-me ao campo enquanto fui novo. Semeava de tudo, de trigo a favas e grão. Sou natural de uma aldeia do concelho de Mourão onde ainda tenho casa e um terreno com olival onde gosto de ir com frequência. Era trabalho de sol a sol. Como não havia outros empregos inscrevi-me para militar e entrei na infantaria em Beja. Daí fui para Tancos para a Força Aérea e para Sintra, onde embarquei para Moçambique.
Fui para Moçambique em Dezembro, dias antes do Natal, foi um bocado cruel. Mas na altura não pensei nisso. Se foi uma guerra estúpida? Não sei. Na altura não pensávamos nisso, acreditávamos que estávamos a defender a nossa pátria. Fui da polícia aérea e o meu trabalho era defender os aeroportos de ataques. Tive alguma sorte e não fui para o mato. Mas foi mau. Recebíamos os feridos de avião, helicóptero, avioneta, tudo. Estive em Mueda e Vila Cabral, que era mau. Apercebíamo-nos dos muitos mutilados que ali chegavam. O que lá vi, mesmo não estando na guerra, marcou-me. Ainda hoje, se ouvir uma porta a bater com estrondo sobressalto-me.
Quando voltei acabei os estudos e candidatei-me à PSP e à Polícia Judiciária (PJ). Aceitei entrar na PJ e fui inspector chefe. Na altura vivia num quarto em Lisboa e soube que estavam a vender casas na Icesa, em Vialonga. Tinha 35 anos. Comprei casa e fiquei aqui até hoje. Ainda fiz duas comissões em Macau na PJ e acompanhei a passagem para a administração chinesa em 1999. Reformei-me em 2002. Foi uma grande lição de vida a PJ. Conheci profissionais incríveis e também vi milhares de crimes.
O crime que mais me comoveu foi a morte de uma criança em São Mansos por causa de uma bomba das brigadas FP25. Vi muito sangue enquanto estive ao serviço. Valeu-me o apoio da família, foi muito difícil para eles. Só comecei a ter vida social depois de me reformar. Estava no Alentejo quando soube do crime do avô que matou a neta na Icesa. Foi nas traseiras do meu prédio. Uma tragédia. Conhecia o velhote e via-o passar com a miúda. Foi uma estupidez. É acima de tudo um problema social, um acto de desespero. Ser velho e sem posses e ver que a filha não tinha capacidade de criar a criança, pensou em levá-la com ele para não a deixar na miséria. Pensou a maior estupidez possível.
Em Vialonga não conhecia ninguém até me dedicar ao associativismo. Só quando me reformei comecei a conviver mais com as pessoas da terra, de quem gosto muito. Tira-me do sério a mentira, intriga e desonestidade. Não as suporto. Ver um colaborador, companheiro, colega ou amigo espetar a faca nas costas do outro não admito. Há valores que são sagrados. Mentir e ser falso e desonesto é o pior que pode haver. Hoje em dia voto nas pessoas e não nos partidos. Ao longo da vida já votei por diversos partidos, mas na terra entendo que devemos votar em quem pensamos ser melhor para gerir a causa pública.
Tenho um neto e vejo um futuro difícil para a geração dele. No meu tempo com a quarta classe ainda encontrávamos alguma saída. Hoje são doutores e não conseguem arranjar trabalho. Enquanto tiverem avós e pais vai dando para viver, mas o dia de amanhã será complicado. Vejo o futuro com apreensão. A falta de respeito também me incomoda e não vejo nada de bom no horizonte. Tenho também receio que a guerra da Ucrânia não fique por aqui.
Temos de olhar para os mais velhos de outra forma. Isso tem de partir das entidades públicas e do Estado. Os únicos apoios que vão sendo dados aos mais velhos e às crianças é através de Instituições Particulares de Solidariedade Social e associações como a associação de reformados, pensionistas e idosos de Vialonga. Se não fossem elas estaríamos muito pior. As associações fazem pequenos milagres todos os dias pelos idosos e as crianças. O pior que uma pessoa de idade pode fazer é fechar-se em casa e passar os dias sozinha em frente à televisão.
Gosto de ir todos os dias buscar o meu almoço e se o tempo estiver bom dar uma volta na Flamenga com a minha esposa. Gosto de me manter activo e saudável. É preciso sair para a rua, passear, encontrar outras pessoas. Considero-me um idoso que não admite ser velho. Enquanto me puder mexer quero mexer-me. O sonho é continuar com força e genica para viver os dias e não pensar na idade que tenho. A maior parte das pessoas vendo o que faço e a cabeça que tenho não acredita na minha idade (risos).

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