Três Dimensões | 26-11-2024 21:00

A caridade tóxica é uma preocupação para David Catarino

A caridade tóxica é uma preocupação para David Catarino
TRÊS DIMENSÕES
David Catarino é pastor na Casa do Pai, em Santarém, onde um dos valores assenta numa igreja multigeracional

David Catarino, 47 anos, é pastor na Casa do Pai, em Santarém, e formado em artes plásticas.

O MIRANTE conversou com o pastor evangélico e artista sobre o seu percurso, o que leva as pessoas a procurar a igreja e os desafios numa sociedade cada vez mais plural e aberta. A Casa do Pai ajuda pessoas carenciadas temporariamente e o pastor defende que há que dar ferramentas para que a pessoa possa ter uma vida autónoma.

Vivemos 12 anos em Londres. A nossa filha mais velha continua no Reino Unido a estudar psicologia. Nasci em Lisboa, já sou pastor há algum tempo e fomos fazer um trabalho missionário. A minha esposa era enfermeira pediátrica, mas agora está a tempo inteiro na igreja. Percebemos que era altura de regressar e Santarém foi o lugar que nos acolheu. Acho uma cidade muito simpática, mas está a crescer demais. Dizia que era o paraíso e já temos hora de ponta. Esta igreja existe há 86 anos, viemos substituir o pastor, já reformado, mais ou menos há dois anos. A tempo inteiro estou eu, a minha esposa, a secretária Lina e o pastor Cardoso. Estamos com 350 membros, mais 110 crianças. Temos uma congregação no Cartaxo e outra em Alcanhões e precisamos de um espaço maior para as crianças. A minha esposa também é formada em música e a ideia é formar músicos.
A minha avó foi a primeira a converter-se, depois a minha mãe e a minha tia, que não acreditava em Deus. A minha conversão foi por volta dos seis anos. O meu pai era pastor e vivemos em vários sítios do país. Uma vez, na escola, fizeram aquelas brincadeiras sobre o que é que queres ser quando fores grande e eu sentei um miúdo à minha frente e comecei a falar de Deus. Depois percebi que tinha de ir até às artes plásticas. Na altura era mais um evangelista criativo, fazia trabalhos em prisões, nos bairros, achava que isto de ser pastor era para gente mais velha e sábia. Fui líder do Café Convívio e estive dois anos no Desafio Jovem a fazer artes gráficas. Acabei por fazer Teologia e agora junto as artes e a parte pastoral.
O que traz as pessoas à igreja é o sentido de pertença e busca de algo maior. É importante encontrar um relacionamento, um trabalho de que gostemos, mas se essas coisas faltam fica um vazio enorme e Deus acaba por ser aquele relacionamento mais estável, quase como uma âncora. Um dos nossos valores é que somos uma igreja multigeracional. Temos um trabalho específico para cada faixa etária. Nos jovens temos palestras de vários temas como sexualidade, identidade, parte relacional, esclarecemos dúvidas e questões sobre a existência de Deus. Temas que abordamos sem tabus.
Acho que a igreja tem de ser o reflexo da cidade em termos de resposta. Estamos a preparar cerca de 40 cabazes de Natal, há uma carência cada vez maior e às vezes uma pobreza escondida. O projecto Abraçar a Cidade antes era mais específico, para a toxicodependência, mas temos pessoas com necessidades apenas de isolamento, outras que chegaram a Portugal e não têm ainda um trabalho. Mas uma das preocupações, além de dar alimento e roupa, é conversar. À mesa não há títulos, somos todos iguais. Precisamos de alimento e daquele momento de pausa. Queremos que este lugar não seja sempre com as mesmas caras e os que foram ajudados agora estão a ajudar; pessoas que viveram na rua ou nas drogas e agora são pais de família, porque precisamos desses exemplos práticos. A caridade tóxica preocupa-nos muito, temos de dar ferramentas para que a pessoa possa ter uma vida autónoma.
Nunca estive no mundo das drogas, mas também estive perdido. Quando tentei fazer a vida na minha força, seguir o meu próprio caminho ou experimentar o bom da vida. Houve uma altura da adolescência em que disse se calhar estou a ser privado, estou sempre na igreja, vou experimentar algumas coisas. Claro que no início o prazer é cativante, mas percebi que havia uma moeda de troca. É como se Deus em mim estivesse triste e o meu relacionamento com ele esfriou por ser hipócrita. Vivi numa altura em que havia muitas regras de brincos, calças, batons. Não podia haver bateria na igreja, guitarra eléctrica ou uma parede preta. Sempre questionei essas regras e acho que não devemos aprisionar as pessoas a regras institucionais. Não gosto de regras, gosto de hábitos que me construam e ajudem a ser melhor.
Não vale a pena dizer que temos uma família tradicional se é disfuncional. Claro que tentamos preservar o casamento, mas há situações onde há violência. A nossa sociedade idolatrou um bocado o amor e às vezes há coisas mais valiosas do que os sentimentos, porque eles podem mudar. O problema não é a homossexualidade, é o ser humano que precisa de ser transformado. Não faz sentido dizer que Portugal é cristão se as atitudes não se reflectem em casa, na forma como tratamos os nossos filhos, etc... O Brasil pode ser maioritariamente evangélico, mas se a criminalidade não baixar isto para mim é um cristianismo pobre.
A religião acaba por ser quase uma imposição e não uma coisa que nasce de dentro para fora. Às vezes gostamos de criar pecados mortais dentro da igreja e a igreja tem de estar aberta a toda a gente. Mas também creio que vivemos um momento de desorientação nesse aspecto de não afirmarmos o que é biológico.
Não guardava o sábado porque quanto mais trabalhasse para Deus melhor. Não descansava sem culpa, não tinha um hobbie. Tinha uma dificuldade muito grande em desligar, quando é uma vocação acaba por ser mais difícil. Além de me matar no crossfit, que acho que é o meu hobbie, sinto necessidade de libertar a mente através das artes. Leio, caminho, vou ver o mar, passeio com o nosso cão, brinco com os meus miúdos. Tenho uma família espectacular!.

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