Três Dimensões | 31-12-2024 07:00

“Os advogados não são todos ricos, isso é uma falácia que inventaram”

“Os advogados não são todos ricos, isso é uma falácia que inventaram”
TRÊS DIMENSÕES
Sara Machado exerce advocacia em Vila Franca de Xira

Sara Machado é advogada em Vila Franca de Xira, cidade onde nasceu, estudou e vive com a família. Tem jeito para lidar com as pessoas e a maioria dos casos que tem em mãos envolve menores. Trabalha numa profissão exigente e que retira tempo para o lazer, mas na qual continua a acreditar. É advogada da Associação das Vítimas da Legionella, vice-presidente dos Bombeiros de Vila Franca de Xira e presidente da mesa da assembleia-geral do Clube do Fado.

A minha mãe é do norte do país e o meu pai veio de África. Quando se conheceram fixaram-se em Tondela, mas como o meu pai é militar, esteve muitos anos na Marinha em Vila Franca de Xira e mudaram-se para cá. Eu nasci em Vila Franca de Xira, estudei cá e resido cá. Em criança era fã do Indiana Jones e gostava de arqueologia, mas queria ser juíza influenciada pelos filmes. A minha ideia era ajudar os outros. Acabei por seguir o curso de ciências, mas como era frágil a matemática um professor deu-me nota para ir a exame e mudar de curso.
Terminei o curso em 2011. Enquanto estava a estudar trabalhei em lojas e supermercados para pagar os livros e os transportes. Não aproveitei a faculdade como devia, foi uma vida de trabalho e de poucas festas. Estagiei e em 2014 comecei a exercer advocacia na RVF, onde fiquei até 2019. Já era associada, mas arrisquei fazer o caminho sozinha. No final de 2019 vim para onde estou, em Vila Franca de Xira, e abri sociedade com a minha colega que está sediada em Vila Nova de Gaia.
Aceito todo o tipo de casos, mas da experiência que tenho estou mais vocacionada para a família e menores. Tenho jeito para lidar com as pessoas. Trato de divórcios, partilhas, muitos casos de abuso sexual de menores, litígios com crianças, e agora aparecem cada vez mais casos de maus-tratos psicológicos, coisas muito complicadas. Mesmo que a lei seja aplicada de forma igual para todos, tem de se adequar. Cada criança é uma criança, cada casal é um casal, trabalho numa vertente muito humanista do Direito.
É impossível desligar-me dos casos. No meu entender, se não tivesse filhos não conseguia exercer tão bem a minha profissão. Acabamos por ser um apoio psicológico dos clientes. Considero que cada vez mais devia haver uma prática articulada do Direito com outras disciplinas como a psicologia. Muitas coisas tiram-me o sono e só é possível trabalhar com um caderno ao lado da cama. Acordo com insónias e aponto as ideias, escrevo para não me esquecer e descansar. É uma profissão muito agressiva a nível pessoal e profissional.
Os advogados não são todos ricos, isso é uma falácia que inventaram. Entre escritórios, Caixa de Previdência e quotas para a Ordem de Advogados estamos a falar entre 500 a 600 euros todos os meses, um valor estanque. Não concordo. Somos pródigos em primeiro ajudar e depois logo vemos. E isso é trabalhar fiado. As pessoas não têm esta noção quando vão a um advogado. Retiro a valorização das mensagens dos clientes que me agradecem.
Há muito tempo que sou sócia dos Bombeiros Voluntários de VFX. Quando fui convidada para integrar as listas aceitei, porque salvaram a vida do meu filho mais novo. Um dia o meu filho teve uma convulsão e os bombeiros chegaram primeiro que o INEM. Se não fossem eles a aguentar o barco até o INEM chegar o meu filho podia não estar cá. As pessoas não têm noção do que é largar a família para ir acudir outros e poder não regressar. Não têm noção do que é fazer isto e de forma voluntária. Nos quartéis de bombeiros não existe apoio psicológico permanente, as pessoas presumem que existe, mas não.
Nunca pensei sair de VFX. Gosto da ideia de ser uma rua para a frente e outra para trás e de ser uma cidade que não pode crescer para os lados porque estamos entre rio e montes. A cidade tem comércio, hospital, escolas, serviços e não me sinto insegura a andar na rua. Na realidade não me vejo a sair daqui.
A vida nocturna resume-se a poucos pontos, é verdade. Mas VFX tem uma carrada de eventos, quase todos os fins-de-semana. Nas terras há coisas boas, que devem ser aproveitadas. Não podem dizer que não há nada. A faixa etária mais velha trabalha e não tem noção do movimento durante o dia. Eu que faço profissão na cidade vejo que não há estacionamento, o mercado e a cidade têm movimento, só não vê quem não quer.
Não sou a favor das touradas, porque considero que há desigualdade entre animal e cavaleiro. Gosto de ver os forcados, que considero que estão de igual para igual e não fazem mal ao animal. Mas é uma identidade da terra e deve-se manter.
Tenho pouco tempo para descansar. Tenho dois filhos, sou casada e obrigo-me a ir de férias. Normalmente são 15 dias sem estar no escritório, mas levo o computador, desligar não é possível. Os advogados continuam a ter uma das profissões mais nobres do Mundo e eu acredito na justiça. É lenta, burocrática e demorada, mas não falha. Os moldes da profissão não sei se vão mudar. Agora os estagiários têm de ser obrigatoriamente pagos, e eu concordo. Mas a advocacia em prática individual enfrenta dificuldades acrescidas em relação às grandes sociedades.
Não existem sistemas judiciais perfeitos porque são todos operados por humanos. Também não acredito na ingerência por si só da inteligência artificial e até já se fala na possibilidade de substituir advogados e conduzir julgamentos. Não há nada que substitua o coração de uma pessoa. Pode-se tentar recriar o sentimento ou empatia, mas substituir não é possível. O sistema judicial português funciona bem, mas tem de ser limado. Faltam meios humanos e materiais, mas ainda há coração e isso vê-se no corredor dos tribunais.

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