“O cheque-dentista existe, mas muitos pais nem o usam”

Helena Marques Dias tem 67 anos, é de Sacavém, mas reside na Póvoa de Santa Iria e trabalha há 25 anos em Samora Correia, onde cuida do sorriso dos pacientes que confiam no seu profissionalismo. Estudou em Lisboa e ainda trabalhou em Torres Vedras, antes de se fixar no Ribatejo. Diz que hoje os pacientes desconfiam mais do que sabem, mas nem por isso deixa de ser um coração aberto na sua missão. Confessa não tolerar a falta de educação das pessoas e garante que os portugueses não são cuidadosos com a sua higiene oral.
Sou filha única e tive uma infância muito feliz, felizmente. Naquela altura, brincávamos na rua, sem preocupações, porque a minha rua não tinha carros. No Verão, podíamos ficar até tarde a jogar à apanhada, a inventar brincadeiras e até a trepar a uma figueira que havia por lá para ver quem conseguia apanhar mais figos. Quando brincava em casa, gostava de brincar com bonecas, aos médicos ou aos professores. Também adorava costurar roupas para as bonecas. Havia uma vizinha budista que me dava pedaços de tecido que não tinham utilidade para ela e, por isso, passava horas entretida a fazer saias. Naquela altura não havia muito mais para brincar. Os miúdos hoje têm tudo e não brincam. Passam muito rapidamente de uma fase para a outra.
Nasci e cresci em Sacavém. Fiquei lá até casar e depois a vida levou-me para outros lugares. Não tinha uma ideia fixa do que queria ser quando crescesse. Houve uma altura em que quis ser bombeira, depois hospedeira de bordo, mas acabei por seguir um caminho completamente diferente. Ainda assim, o gosto pela medicina dentária surgiu mais tarde, já em adulta.
Fiz o curso já depois de casada, quando estava na casa dos trinta. Foram seis anos de estudo na Escola Superior de Medicina Dentária de Lisboa, que agora se chama Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa. Acabei por ficar dez anos, porque comecei logo a trabalhar como assistente dentária. Foi ali, ao lado dos alunos, que percebi que gostava mesmo daquela área. Até então, e quando era miúda, tinha imenso medo de ir ao dentista, como tantas crianças, mas com o tempo vi que a medicina dentária estava a evoluir muito e que o sofrimento associado a estas consultas era, muitas vezes, fruto da falta de informação e dos mitos que passavam de geração em geração.
Depois de trabalhar durante dez anos como assistente dentária, foi o meu marido que me deu força para estudar e incentivou-me a fazer as provas para entrar na faculdade. Ele sempre acreditou que tinha capacidade e apoiou-me em tudo. Já tinha duas filhas gémeas quando entrei para o curso. Nessa altura, enquanto estudava, trabalhava ao mesmo tempo como assistente dentária em Torres Vedras. Felizmente, tive um colega que foi e continua a ser meu amigo. Quando não tinha aulas, ia trabalhar, e ele ajudava-me imenso a conciliar estes aspectos.
A ida para Samora Correia aconteceu porque o meu marido trabalhava na maior firma de material dentário do país, a Dentofarma. Ele tinha a zona de Samora Correia, Setúbal e o Algarve, e foi assim que soube que o Dr. Cláudio Akatsuka queria vender a clínica que tinha ao pé dos Correios. Ele vendeu-me a clínica, acabei por ficar nesse espaço durante vinte anos e, há cinco anos, mudei-me para as actuais instalações. Comprei a loja, fiz obras e tenho a clínica dentária na Avenida O Século.
Os pacientes mudaram muito desde que comecei a trabalhar. Antes, vinham com mais medo, mas confiavam no profissional. Nem tenho razão de queixa, mas hoje são muito mais exigentes e, muitas vezes, acham que sabem mais do que nós porque leram alguma coisa na Internet. Algumas questionam diagnósticos e tratamentos sem perceberem e sem compreenderem que determinadas coisas não se adequam a elas. Julgam que o profissional não sabe ou não quer fazer. Antigamente, o problema da perda de dentes estava ligado à falta de informação.
O facto de haver mais pessoas sem dentes e com piores hábitos de higiene oral não é por questões económicas, é mesmo por falta de cuidado. A alimentação piorou, as pessoas não escovam os dentes como deviam e não incentivam os filhos a fazê-lo. Há o programa do cheque-dentista, que existe há mais de vinte anos e que permite consultas gratuitas – nem que seja só para ouvir a opinião de um profissional -, mas há pais que nem sequer os aceitam nas escolas. Parece impossível, mas acontece.
Curiosamente, os pacientes estrangeiros que atendo, como pessoas do Leste da Europa e do Brasil, são muito cuidadosos com os dentes. Não é por terem mais dinheiro, é uma questão cultural. Usam fio dental, fazem revisões regulares e, se lhes cai uma obturação, telefonam de imediato. O português, muitas vezes, só vem quando o problema já está avançado ou aconteceu há meses.
Dá-me muito prazer saber que confiam em mim. O que me faz sorrir no meu dia-a-dia é ver pacientes que me acompanham há vinte anos e que chegam ao consultório com o mesmo espírito de sempre, como se fosse o primeiro dia. O que me entristece, por outro lado, é perceber que algumas pessoas não ouvem nada do que lhes explico: quando passo algum tempo a esclarecer dúvidas e, no fim, fazem perguntas que mostram que não entenderam nada. Isso frustra-me um pouco.
A falta de educação tira-me do sério. Tenho um pavio um bocadinho curto para isso. Há muitos anos, até pus uma menina fora do consultório à frente da avó por esse motivo. Se há algo que me define, é ser demasiado coração aberto. Sou muito humana e, por vezes, faço tratamentos sem levar dinheiro quando vejo que a pessoa não pode pagar. Não é a primeira vez que faço coisas de graça, o que é quase, simultaneamente, um defeito também. Mas fico contente comigo, porque não me faz falta. Penso sempre que Deus me ajuda e as pessoas ficam agradecidas.
Agora que já trabalho há tantos anos, comecei a reduzir um pouco o ritmo. Já não trabalho à quarta nem à sexta, pois tenho uma colega que assume esses dias. Gosto de aproveitar esse tempo para ler, ir ao cinema e viajar. Mesmo que seja só para sair daqui por uns dias, ir a Madrid, Paris, Barcelona ou passear pelo nosso país, como ir ao Minho ou ao Porto. Há dois anos seguidos que passo o meu aniversário em Paris. São apenas quatro dias, mas volto revigorada.
Considero-me uma mulher realizada. Tenho um casamento com mais de quarenta anos, duas filhas gémeas, ambas formadas e com a vida organizada, e dois netos de 15 anos. Não posso pedir mais a Deus. Tenho saúde e a minha família também tem. Vivo na Póvoa de Santa Iria há quinze anos, numa casa que herdei do meu sogro. Nunca pensei viver lá, mas remodelámos e gosto do sítio onde vivo. Morei nove anos no Porto Alto e, olhando para esta zona de Samora Correia, acho que o trânsito pesado não devia passar pelo meio da cidade. Deveria ser construída uma circular para desviar o tráfego, porque a poluição e o ruído são excessivos.