Joaquina Raimundo: uma mulher de cultura que sempre procurou ser diferente e criativa

Natural da Amareleja e filha de agricultor, Joaquina Raimundo é, aos 76 anos, uma das principais dinamizadoras da cultura em Alenquer. A paixão pelas letras e pela poesia levou-a a estudar e a concretizar o sonho de ser professora. Deu aulas no Externato João Alberto Faria, em Arruda dos Vinhos, é escritora e uma das fundadoras da associação cultural Gerábriga. Descreve-se como uma mulher simples, de fé e sempre pronta a ajudar o próximo. Mantém uma energia incansável e acredita que a cultura é a maior riqueza de um concelho.
Sou natural de Amareleja, concelho de Moura, distrito de Beja, onde vivi até casar, com 21 anos, altura em que me mudei para Alverca. Nasci quase no campo, o meu pai era agricultor e, ainda hoje, vou para o monte que era dele. Eram tempos difíceis, em que era preciso trabalhar muito para sobreviver. A vida do alentejano não é fácil e requer resiliência, devido à pobreza e à falta de apoios. A agricultura foi sempre um parente pobre. Trabalhávamos todos, noite e dia, para termos uma vida mais confortável e digna, por isso o meu pai também tinha comércio. Fui criada com muita felicidade, num espaço de grande beleza natural e nostalgia, onde éramos livres.
Não tínhamos acesso à cultura e quase todas as pessoas eram analfabetas. O meu pai tinha a quarta classe e a minha mãe sabia pouco de escrita e leitura. Talvez por o meu pai ter comprado um rádio, eu tinha a mania de ser diferente; os meus pais não sabiam onde eu tinha ouvido determinadas palavras.
Nasci com vocação para a poesia e era uma menina que gostava muito de ler. Lia todos os bocados de jornal que o meu pai usava para embrulhar os artigos no comércio. Os meus pais, por vezes, zangavam-se comigo porque estava sempre a ler e tinha de ajudar noutras tarefas. Fazia recortes de artistas. Tinha os Beatles na parede e os meus pais nem sabiam quem eram. Sempre tive a mania de ser diferente e criativa. Fui sempre sensível às pessoas, aos animais e à natureza — isso não se explica, nasce connosco.
Quando casei, tinha a quarta classe, e o meu marido, que é médico, tinha o curso industrial. Licenciamo-nos os dois a trabalhar. O meu marido entrou em Medicina enquanto trabalhava na Mague (empresa histórica de metalomecânica de Alverca), e só saiu depois de se licenciar em Medicina. Fiz o meu curso de Línguas e Literaturas Modernas Português/Inglês em quatro anos e tive a sorte de começar logo a trabalhar no Externato João Alberto Faria, em Arruda dos Vinhos, onde permaneci até me aposentar.
Já sou casada há 55 anos e já tinha o meu único filho quando estava a estudar. Paralelamente aos estudos, dava explicações em Alverca para fazer face às despesas. Cheguei a dar explicações a 30 alunos. Seguimos os nossos sonhos e conseguimos. Eu queria ser professora e o meu marido médico, e sabíamos que, para isso, tínhamos de estudar. Dizia muitas vezes aos meus alunos que, quando queremos, não há impossíveis. Nunca desistam dos sonhos, sonhem acordados e façam aquilo de que gostam.
Fui uma professora amiga dos seus alunos e muito estimada. São memórias que ficam. Quando me aposentei, alguns pais não compreenderam por que não fiquei mais uns anos, mas eu senti que estava na hora de sair: queria fazer outras coisas. Na altura, já fazia parte da Palavra Cantada, associação cultural de Vila Franca de Xira, onde contava histórias de autores como Fernando Pessoa, Almeida Garrett, Sophia de Mello Breyner, entre outros.
Comprei casa em Alenquer apenas para os fins-de-semana, mas acabei por me mudar para cá com o meu marido. Já conhecia o mestre João Mário, de uma homenagem que lhe fiz, mas depois encontrámo-lo no supermercado, conversámos e, a partir daí, criámos uma amizade muito grande até à data da sua partida.
Desafiaram-me para fundar uma associação cultural em Alenquer, porque só havia uma. Assim nasceu a Gerábriga, virada para a área literária e para os valores culturais e humanos. Convidei várias pessoas com talento, ligadas ao teatro e à cultura da capital. Estas 15 pessoas fundaram a Gerábriga em 2017, e temos tido uma dinâmica muito intensa. Realizámos acções socioculturais e artísticas, e de valorização do património cultural, muito centradas em Alenquer. Os alenquerenses dão valor à cultura, mas aderem pouco. Ainda assim, não tenho razão de queixa. As pessoas têm aderido às nossas iniciativas. A associação conta com pessoas jovens, tive essa preocupação. A Gerábriga é bastante conhecida em Lisboa.
Não sou política, mas precisavam de alguém que pudesse falar sobre cultura e educação. Foi com esse propósito que fui para a Assembleia Municipal de Alenquer, eleita pelo PS. Não podia deixar de contribuir, dentro das minhas possibilidades, nas comissões da assembleia. Sou também comissária alargada na CPCJ. Sou uma pessoa que faz tudo com gosto, alegria e prazer. O que mais me desilude são os maus-tratos a crianças, a pobreza, a desumanidade e a destruição do meio ambiente.
Tive muita sorte quando vim para Alenquer, fomos muito bem recebidos. Amo o meu Alentejo, mas gosto muito de viver aqui. Estou integrada e contribuí para o desenvolvimento. A cultura é o mais importante que temos num concelho. Um dia em que não escreva um poema não é um dia para mim. Já publiquei dois livros de sonetos, mas tenho centenas de poemas que ainda não tive tempo de rever e organizar. Faço dezenas de apresentações de obras e revisões por ano, além de críticas literárias. Este ano, já tenho a agenda cheia. Temos de saber dizer “não posso”. Se me pedem, é porque acreditam em mim, mas não gosto de defraudar ninguém.
Sou muito exigente comigo mesma e gosto de saber que fiz o meu melhor. Tenho muitos projectos, mas um dos maiores é levar a Gerábriga até onde puder. Já estou, no entanto, a preparar o futuro, para que a associação tenha continuidade. Não quero que ela morra comigo. Tenho muita prosa e poesia por escrever e muito para dar à sociedade e a quem precisa. Todas as quintas-feiras de cada mês, os elementos da associação fazem voluntariado geriátrico.
Estou para lançar um livro sobre o património edificado, ou não, de Alenquer e sobre Damião de Góis. Trata-se de um romance, mas corresponde aos factos. O amor é ficção baseado em documentos e entreguei a um historiador para ver se há incongruências na história.
Sou uma pessoa com uma personalidade muito positiva e focada no bem-estar. Se não estiver feliz, ninguém à minha volta está feliz e eu faço tudo para estar. Enterro as adversidades da vida e sou muito tolerante, compreensiva e amiga. Só assim se leva um casamento com mais de 50 anos. Fico mais magoada se magoar alguém do que se alguém me magoar. Procuro compreender por que razão a pessoa me fez aquilo, mas, ao contrário, não fico em paz comigo mesma.
Tenho muita fé. Jesus é o ser mais importante da minha vida, e agradeço tudo o que me dá. Partilho muito com os outros, e só dou uma milésima parte do que Deus me dá. Sou simples, nascida num meio pequeno. Um dos meus defeitos é ser demasiado sincera, mas não me tenho dado mal com isso. Sou autêntica e sou feliz porque sou íntegra.