Três Dimensões | 18-06-2025 07:00

“Um comandante dos bombeiros hoje é um secretário administrativo”

“Um comandante dos bombeiros hoje é um secretário administrativo”
TRÊS DIMENSÕES
Nuno Santos entrou para os Bombeiros da Merceana com 15 anos e hoje está ao comando da corporação - foto O MIRANTE

Nuno Santos, 48 anos, começou como bombeiro aos 15 anos e hoje é comandante dos Bombeiros Voluntários da Merceana. Licenciado e mestre em Protecção Civil, lidera a corporação com calma e ponderação. Defende a revisão da carreira de bombeiro, até porque sente que o Estado não tem sabido valorizar os profissionais que respondem a 90% das ocorrências a nível nacional. Para relaxar, faz percursos de bicicleta BTT e afirma que, na Merceana, as pessoas têm qualidade de vida.

Nasci na maternidade de Torres Vedras em 1976, mas vivi sempre na Merceana. Desde 2013, quando casei, que vivo aqui perto em Casais Brancos. A minha infância foi espectacular. Os rapazes da minha geração juntavam-se na rua, brincávamos e tínhamos aventuras. Estudei na Merceana até ao 9º ano e fiz o ensino secundário em Alenquer. Fiz um interregno nos estudos e retomei em 2006. Licenciei-me em Protecção Civil no ISLA, em Lisboa, e fiz o mestrado em Protecção Civil na Universidade Europeia de Madrid. Ainda iniciei o doutoramento mas coincidiu com o convite para comandar os Bombeiros da Merceana e não consegui dar seguimento. Quando conseguir vou retomar.
Aqui na Merceana quando havia uma ocorrência, normalmente incêndios rurais, a sirene tocava e as pessoas da aldeia saíam à rua para ver o que se passava. Na altura tínhamos um veículo de combate a incêndios e lembro-me de ser miúdo e os pára-choques davam-me pela testa, fiquei com essa imagem guardada na memória. Eu morava na rua da igreja e brincava com os meus amigos no largo, na Praça Luís de Camões, perto do quartel de bombeiros. Sempre quis ser bombeiro, mas em miúdo convidaram-me para integrar a fanfarra e não aceitei porque não gostava.
Com 15 anos fui desafiado por um bombeiro para ingressar nos bombeiros. Bateu-me à porta de casa e fomos falar com o comandante. A minha mãe ao início não gostou muito da ideia, mas facilitou o facto do meu pai ter entrado para a corporação da Merceana um ano antes. Chegámos a estar os dois nos bombeiros e a minha mãe acostumou-se.
Tento conciliar a vida familiar e profissional. Por vezes não é fácil, porque as ocorrências não têm dia e hora para acontecer. Mas tenho um segundo comandante e um adjunto de comando e conseguimos articular entre nós a gestão do serviço. A minha família já me cobrou as ausências, quando saio à noite e quando estou de serviço, mas faz parte. A minha filha mais velha tem 11 anos e a mais nova quase 7.
Um dos momentos que mais me marcou, até à data, foi o falecimento de um colega ainda novo, o Pedro, que teve uma morte súbita. Para os bombeiros foi um choque, abalou-nos a todos. Com o passar do tempo fomos superando. Os bombeiros são como uma família, criamos laços e amizades. Quando os mais velhos partem deixam-nos as memórias e saudades. Algumas ocorrências são difíceis de digerir, quando envolvem mortes violentas. Estamos numa zona pequena, com pouca população e conhecemo-nos todos.
Enquanto comandante tento ser razoável, com bom senso. Gosto de me colocar na posição do outro e penso sempre nas consequências das minhas tomadas de decisão. Tento ser ponderado. Gosto de paz e mantenho a calma e a tranquilidade. Não gosto que as pessoas andem stressadas e revoltadas. Nas ocorrências temos uma hierarquia a cumprir e temos de ter outra postura, mas no dia a dia tento manter o ambiente calmo.
Não me sinto valorizado nem reconhecido pelas instituições, principalmente pelo Governo. Os bombeiros estão a ser relegados para segundo plano. É exigido, a curto prazo, que haja uma alteração porque os profissionais exigem-nos todos os dias melhores equipamentos, melhores vencimentos, e melhores condições que as associações humanitárias não têm capacidade para dar resposta. Tem de haver uma reestruturação a nível nacional dos bombeiros e tem de partir sempre do Estado. Não podem ser as associações a fazê-lo de própria iniciativa.
Nesse aspecto acho que não estão a valorizar os bombeiros, que são quem responde a 90% das ocorrências a nível nacional, de todo o tipo. Não há outras instituições que cheguem aos nossos calcanhares, mas depois vemos outras carreiras nas forças de segurança e ICNF, por exemplo, a serem valorizadas e a ter carreiras dignas e os bombeiros não saem da cepa torta. Os próprios bombeiros não usam a força que têm, não somos unidos e todos a caminhar no mesmo objectivo. Se isso acontecesse, acredito que tínhamos maior força reivindicativa. A Liga de Bombeiros Portugueses até tem reivindicado e tentado levar assuntos a resolução, mas falta-lhe retaguarda. Não podemos fazer greve, por exemplo, e isso retira-nos poder reivindicativo.
Quando um jovem chega aqui ao quartel e diz que quer ser bombeiro, tento expor ao máximo a realidade para onde vem. Não pinto um cenário cor de rosa nem muito negro, senão assustam-se e nem chegam a entrar. Faço questão de explicar que os bombeiros são diferentes de outras instituições. Damos muita formação, uma conduta de vida com valores que fomentamos, postura, comportamento em grupo e cidadania. Costumo dizer que aqui não damos quase nada, excepto formação e valores. Depois eles desenvolvem o gosto pelos bombeiros.
O meu hobbie, que adoro, é andar de bicicleta BTT. Aos domingos de manhã junto um grupo de amigos e andamos nos montes a explorar. Estou numa fase da vida em que não me revejo noutras funções. Nunca pretendi sequer chegar a comandante, mas as coisas proporcionaram-se naturalmente. Prefiro viver sem criar grandes ilusões futuras e as coisas irem acontecendo. Não sou hipócrita para dizer que se me surgisse determinada oportunidade de trabalho diria que não, mas andar a pensar todos os dias nisso não o faço.
Um comandante de uma corporação de bombeiros hoje em dia é um secretário administrativo. Alguém criou o computador para que facilitasse a vida, mas complicou muito mais. A nível administrativo ocupa-nos muito tempo, temos muito que fazer e passo menos tempo no terreno. Aqui na Merceana temos qualidade de vida. É uma zona rural e bonita, boa para quem quer descansar, ter contacto com a natureza e fazer desporto.

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