Três Dimensões | 25-06-2025 07:00

“Não acredito que os robôs substituam os dentistas, mas quem não se adaptar fica para trás”

“Não acredito que os robôs substituam os dentistas, mas quem não se adaptar fica para trás”
TRÊS DIMENSÕES
Catarina Farias na sua clínica em Samora Correia, onde alia a paixão pela saúde oral à empatia com os pacientes - foto O MIRANTE

A história de Catarina Farias, médica dentista há duas décadas, começa com timidez, bonecas e cadernos cheios de distinções escolares numa cidade quente e vibrante: Recife, capital do estado brasileiro de Pernambuco. Aos 46 anos, carrega no olhar um misto de doçura e determinação. Vive em Samora Correia desde 2015, é casada e mãe do Martim, que vai fazer 15 anos, e do Luca, que vai completar 10. Foi no coração do Ribatejo que decidiu abrir a própria clínica, a DecorSorriso, e assumir o compromisso de cuidar da saúde oral de quem a procura.

Fui uma criança muito tímida, mas sempre muito dedicada aos estudos. Era aquela aluna que ganhava medalhas de mérito e honra, mas que também adorava brincar com bonecas. Lembro-me de juntar as Barbies com as minhas amigas que moravam em apartamentos vizinhos. Brincávamos dentro de casa, mas também muito na rua: jogávamos à bola, voleibol, andávamos de bicicleta, corríamos, escondíamo-nos. As mães é que tinham de nos ir buscar. Hoje é tudo diferente.
Sempre tive uma veia artística muito presente. Gostava de pintar e de fazer trabalhos manuais. A minha mãe ensinou-me a bordar e a fazer croché. Cheguei a fazer roupas para as bonecas e até preparei um enxoval. Era mesmo habilidosa com as mãos. Desde pequena que sentia um fascínio enorme pela área da saúde. O meu sonho era ser médica. Tentei a prova do vestibular, mas a nota era altíssima. Não foi possível por poucas décimas. Nessa altura, a minha mãe estava muito doente e dividia-me entre os estudos, o hospital e a casa. Um dia, numa consulta, a dentista da família, a Dra. Claudette, perguntou-me se nunca tinha pensado em ser dentista. Aquela conversa ficou na minha cabeça. Quando preenchi as opções da universidade, incluí medicina dentária. Acabei por entrar em todas as universidades do Nordeste, mas escolhi a Universidade Federal de Pernambuco, no Recife. Quando comecei a parte prática percebi que estava no lugar certo. Não tive dúvidas.
Depois de me formar, comecei a trabalhar no sistema público de saúde do Brasil, no chamado “Programa Saúde da Família”. Fui colocada em Orobó, uma zona rural, muito carenciada. Dormia lá e tudo. Foi uma experiência marcante. Visitávamos pessoas acamadas, íamos às escolas, e muitas crianças nem chinelos tinham, nem escovas ou pasta de dentes. Escovavam os dentes com sal. Havia casas sem frigorífico. Parece irreal, mas foi nessa realidade que encontrei os gestos mais sinceros de amor. Chegava a casa com frutas, galos, galinhas… Era a forma que eles tinham para demonstrar gratidão.
A decisão de vir para Portugal surgiu do meu lado mais sonhador. O meu irmão já cá estava, a trabalhar como artista de modelação 3D numa empresa de jogos. Tinha o meu consultório montado no Brasil há cerca de um ano e meio, mas quis arriscar. Fiz o mestrado integrado, tratei de todos os trâmites burocráticos, e enquanto aguardava a validação do diploma pela Universidade Fernando Pessoa trabalhei como assistente dentária. Cheguei a prestar serviços a cada dia da semana numa clínica diferente na zona de Lisboa, Amadora e até no Colombo trabalhei. Em 2015, com as deslocações para levar o meu filho à creche, comecei a pensar em abrir algo meu, em Samora Correia, onde residia. Foi um passo enorme, mas fui muito bem-recebida.
A clínica DecorSorriso foi crescendo aos poucos. Senti-me logo samorense. Com o tempo, surgiu a oportunidade de comprar o espaço. Pensei muito, como sempre faço antes de tomar uma decisão, e arrisquei. Acredito muito em Deus e nas questões espirituais. Se tiver de ser, as portas abrem-se. A nova clínica completou três anos em Maio. É maior, mais confortável, tem um gabinete para crianças e uma sala para fazer tomografias. Sinto que estou cada vez mais apaixonada pelas pessoas. Acho que cada um de nós tem um dom e uma missão. Para mim, mais do que tratar dentes, é cuidar de quem está à minha frente. Transmitir segurança, paz e criar uma ligação. Tento cultivar uma relação de amizade com os meus pacientes.
O medo que ainda existe de ir ao dentista vem de experiências antigas. Hoje é tudo diferente: tecnologia, anestesia, especializações. A medicina dentária evoluiu muito. Mas há algo que nunca vai mudar: quem está na área da saúde tem de olhar com os olhos do coração. Trabalhamos com pessoas fragilizadas. É preciso tratar com carinho.
Ainda chegam casos difíceis. Falta cultura de prevenção em Portugal. As dificuldades financeiras também não ajudam. Há programas como o cheque dentista, com os quais colaboro, mas seria importante começar logo nos centros de saúde, com as gestantes, com as crianças nas escolas. Há creches onde os miúdos não têm uma escova de dentes para os lavar depois do almoço. Devia haver uma política de prevenção enraizada, de base. E faltam médicos dentistas nos centros de saúde. Cuidar de uma gestante com gengivite, por exemplo, pode evitar complicações no bebé.
Gerir um negócio não é fácil. É preciso estar em constante actualização. As gerações mudam, os pacientes também. Há quem venha porque ouviu falar bem de mim em conversa com outra pessoa, outros porque leram avaliações no Google. São públicos muito distintos e temos de saber como comunicar com cada um. Vejo a inteligência artificial como um desafio inevitável. Nos congressos já se nota: com uma tomografia, a IA consegue sugerir tratamentos ou identificar falhas. Não acredito que os robôs substituam os dentistas, mas quem não se adaptar fica para trás. A tecnologia será uma mais-valia, mas o que vai continuar a fazer a diferença é a empatia, a compaixão, as competências humanas.
O que me faz feliz é ver os outros felizes. A evolução de um paciente, as conquistas dos meus filhos. Isso preenche-me. Gosto muito do sol. O que me entristece, é a falta de empatia. Todos temos problemas, mas é preciso saber colocar-se no lugar do outro. Se ganhasse o Euromilhões, não deixaria de trabalhar. Abriria uma clínica solidária. É um sonho antigo. Em Portugal não há este conceito. Pode ser que um dia aconteça.
Falar de mim é difícil. Sou impaciente, às vezes. Sou muito acelerada, tenho sempre mil coisas na cabeça e espero que os outros acompanhem o meu ritmo. Mas sou resiliente e empática. Acredito que homens e mulheres são diferentes. E é nas diferenças que está a força. Gosto muito de ler, sou fã da natureza, apesar de passar o dia num ambiente fechado. Faço questão de praticar actividade física pois é essencial para o equilíbrio mental e físico. A ansiedade é a palavra da moda e, sim, sou um pouco ansiosa, mas consigo gerir de modo a que seja saudável. Sinto-me especial porque acredito que tenho um propósito: transformar vidas através da saúde. Deus deu-me o dom da vida. Os meus filhos são a minha maior motivação. Estou aqui por eles, para os encaminhar e ajudar a crescer num mundo melhor.
Já passaram dez anos desde que cheguei a Samora Correia. Acho que a cidade podia apostar mais na cultura, criar espaços de lazer e desporto. A zona ribeirinha podia ser melhor aproveitada, com quiosques, restaurantes. Algo mais permanente do que apenas de forma temporária ou durante as festas.

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