Três Dimensões | 10-12-2025 18:00

“Nas Urgências não se podem tomar decisões erradas”

“Nas Urgências não se podem tomar decisões erradas”
TRÊS DIMENSÕES
Enfermeira há 22 anos, Cláudia Pereira divide-se entre o Serviço de Urgência e a VMER de Santarém - foto O MIRANTE

Cláudia Pereira nasceu em Santarém, cidade onde trabalha há 22 anos como enfermeira no hospital e, desde há 12 anos, como tripulante na Viatura Médica de Emergência e Reanimação. Nesta conversa, alerta para os internamentos sociais e a necessidade de investimento no serviço público de saúde. Lamenta que as pessoas estejam cada vez mais egoístas e partilha o caso de uma utente que voltou à vida e a marcou para sempre.

Nasci em Santarém e cresci na zona ribeirinha, que era muito diferente daquela que vemos hoje. Tenho pena de estar abandonada uma zona que tem um potencial enorme. Dantes tinha vida, fazíamos as festas em honra de Nossa Senhora da Saúde e de Santa Iria, que atraíam muita gente e eram um momento de partilha entre a comunidade. Uma das melhores memórias de infância é ir para o Tejo com a minha madrinha que tinha uma cabana no Tejo, onde aprendi a nadar numa câmara de ar de bicicleta presa a um barco. Brinquei muito na rua. Quando acendiam as luzes sabia que era hora de ir para casa.
Com o tempo fui aprendendo a ser mais contida em dar as minhas opiniões. A vida foi-me ensinando que às vezes é melhor pensar duas vezes se vale mesmo a pena dizer o que estou a pensar ou se só vou criar instabilidade. Sou uma pessoa alegre, de fácil trato e muito fácil de levar. Se me derem um bom argumento, facilmente consigo acompanhar.
A maior lição que a vida me deu foi mostrar-me que nem todas as pessoas são boas. Tenho dificuldade em ver que a pessoa está a imprimir algo negativo, nunca consigo ver as segundas intenções. Acho que o que a pessoa está a dizer é verdade pura e absoluta. Mas cada vez percebo que as pessoas estão mais egoístas. Não interessa que a pessoa ao lado esteja a precisar. E isso ainda me continua a chocar, deveríamos ser mais empáticos.
Quis ser muita coisa mas a enfermagem sempre me chamou a atenção. Era o grande sonho de vida da minha mãe. Sou enfermeira há 22 anos no Hospital de Santarém, sempre no Serviço de Urgência, e tripulante da Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER) há 12. Gostava de ter tido a experiência de ter ido estudar para fora. No dia que o meu pai me disse que tinha entrado na escola de Santarém fiquei triste, mas foi bom ficar em casa porque só tinha como preocupação estudar e isso deu-me liberdade para usufruir da vida académica.
Depois de terminar o curso, o primeiro de licenciatura, estive 12 anos a receber como bacharel porque não foi reconhecido. Foi desmotivante. Mas os desafios maiores são os diários de quem trabalha numa urgência, onde se lida com pessoas num momento de maior vulnerabilidade, e onde não se podem tomar decisões erradas. Um erro na Saúde não é como nos enganarmos a contar a caixa de supermercado ao final do dia. Na Saúde um erro paga-se com vidas e isso deixa-nos amedrontados. Por isso tentamos ter os conhecimentos sempre actualizados para podermos dar a melhor resposta possível.
Às vezes é difícil não perder o equilíbrio emocional. Há situações que acabam por nos tocar, porque vemos nos outros algo com o que nos identificamos. Um jovem que acabou de falecer num acidente e que tem a idade do nosso irmão, um pai que está no final de vida... Tento gerir o melhor que posso. Numa Urgência, o contacto com o utente pode ser breve mas é intenso.
Vivi uma história que, contada, ninguém acredita. Tive uma doente que fumava muito, bebia whisky, tinha horas de sono muito descontroladas e de vez em quando acabava internada. Um dia, a médica disse que ela não devia aguentar a noite e passado umas horas uma colega disse-me que tinha morrido. Fui ter com a senhora, vi a linha do monitor estática, agarrei-lhe na mão e caiu-me uma lágrima. Estava morta, mas o que é certo é que voltou à vida. Até hoje não sabemos o que aconteceu, há coisas que não se conseguem explicar. Passados uns anos encontrei-a num restaurante, dei-lhe um abraço e disse-lhe que tinha marcado a minha vida.
Quando entro na VMER e sei que é uma situação com crianças fico com o coração acelerado. As grávidas também me preocupam. Já assisti várias, numas vezes o bebé já tinha nascido, noutras conseguimos chegar ao hospital. A maternidade é um momento da vida das mulheres que é stressante por si só e esta instabilidade e ansiedade de não saberem se vão conseguir chegar a um hospital que as receba é preocupante.
Há muitas situações de doentes que acabam por ficar internados porque não têm para onde ir. Acabam por prolongar a estadia no hospital porque não têm resposta do sector social. E com uma população cada vez mais envelhecida, fazer esta gestão é um grande desafio.
Estamos a entrar na era das inteligências artificiais, mas na Saúde nada substitui as pessoas. Mas há cada vez menos pessoas a querer enveredar pelos cursos de Saúde, acredito que pelos horários de trabalho por turnos. A nova geração está mais voltada para ter emprego só para ter dinheiro e usufruir da vida. Continua a haver pouca literacia em Saúde. As pessoas foram habituadas a fazer uso inadequado dos serviços de urgência. Há pessoas que fazem febre uma vez e já lá estão.
Sou uma das fundadoras da Associação Scalabitana de Emergência. Estamos a organizar o primeiro congresso, nos dias 23 e 24 de Janeiro, que vai trazer a Santarém palestrantes reconhecidos para partilhar conhecimento. Na Saúde, o privado tem condições hoteleiras fantásticas e dá um complemento importante ao público, mas quando se trata de um problema grave de saúde é o público que resolve. Teria muita pena se o nosso modelo de Saúde evoluísse para a privatização total. O país deve investir mais no serviço. Temos excelentes profissionais, que gostam do que fazem e dão o litro, embora não sejam reconhecidos da melhor maneira.
A felicidade perfeita não existe. O que existe são momentos de felicidade que devemos valorizar. Ninguém consegue ser feliz a todo o momento. Gosto de família, amigos e praia. Sou mãe de um menino com 15 anos e de uma menina com nove. Acho que o meu filho me descreveria como um bocadinho chata e a minha filha como uma mãe meio tonta da cabeça, que alinha em todas as brincadeiras. Os meus pais são os meus heróis da vida real. Faziam uma grande ginástica financeira para que não nos faltasse nada.
Em Santarém gosto da facilidade com que nos movimentamos e da oferta cultural que é cada vez mais e melhor. Tenho pena que as pessoas não adiram mais. Acho que faz falta um espaço para fazer piqueniques. Costumo andar de bicicleta pela cidade com os meus filhos e fico triste por ver tantas lojas fechadas. Somos capital de distrito, mas não sei onde se metem as pessoas. Vão para Lisboa? Estão fechadas dentro de casa? Parece que nunca nada é suficientemente atractivo para saírem de casa.
Pertenci à Banda dos Bombeiros de Santarém e toquei viola na Tuna Académica. Adoro desporto, gosto de desenhar e gostava de ler mais. Falta-me aprender a ser melhor pessoa. Espero conseguir corresponder aos desafios que forem apresentando e estar ao lado daqueles que precisam de mim, seja família, amigos ou os meus doentes.

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