Opinião | 22-04-2024 13:00

Uma história do Nuclear por António Redol

O texto apresentado a seguir integra um outro muito mais extenso em que se analisa a oposição à energia nuclear civil em vários países do mundo (EUA, França, Alemanha, Suécia, Espanha, Áustria, Itália, Suíça, Portugal), o que conduziu ao impasse desta forma de energia a que se vem assistindo desde os anos 70 e 80 do Século XX.

O texto apresentado a seguir integra um outro muito mais extenso em que se analisa a oposição à energia nuclear civil em vários países do mundo (EUA, França, Alemanha, Suécia, Espanha, Áustria, Itália, Suíça, Portugal), o que conduziu ao impasse desta forma de energia a que se vem assistindo desde os anos 70 e 80 do Século XX. Trata-se de uma matéria nunca abordada com esta abrangência na bibliografia internacional. E é a continuação de quatro textos já aqui publicados, dois com o título “O mito da utilização pacífica da energia nuclear” e um terceiro com o título “O ‘bloco soviético’ mais os lobbies ligados às energias renováveis”.

O autor do texto colheu durante anos informação sobre o assunto em revistas de energia nuclear, algumas das quais não se eximiam a publicar os acidentes, as avarias, as dificuldades e erros tecnológicos, a substituição de partes fundamentais e de elevado custo dos reactores, além das acções de oposição às centrais nucleares.

Sobre estas acções, iniciámos com a oposição ao nuclear civil nos EUA. Cabe, agora, a vez da França e da República Federal Alemã, a qual, fundida com a República Democrática Alemã, veio a originar a actual Alemanha.

Acções de contestação ao nuclear civil em França[1]

As primeiras manifestações significativas de oposição às centrais nucleares surgiram em França em 1971, tendo como alvo os estaleiros das centrais de Fessenheim (1.500 pessoas no dia 12 de Abril) e Bugey (15.000 em 10 de Julho), entradas em serviço, respectivamente, em 1978 (os dois grupos da primeira) e 1972 (1º grupo, o 5º em 1980 da segunda). Foram acções encabeçadas pela organização Amies de la Terre, fundada em 1970 e ligada à Friends of The Earth, estadounidense. Dois anos mais tarde, 25.000 pessoas desfilavam em Paris.

A partir de 1973, muitas autarquias locais começaram a contestar a energia nuclear civil na sequência das grandes manifestações de Maio, realizadas em vários pontos de França. 120 comunas pronunciaram-se contra a central de Dampierre, em construção, embora lhes tenham sido prometidas várias contrapartidas de natureza social, assim nascendo um método de “compra” das autarquias através da atribuição de benefícios sociais e, depois, das célebres “rendas”, de que tanto se tem falado em Portugal.

Um plano governamental conhecido por Plano Messmer, Primeiro Ministro (1972-1974), desencadeou uma vaga de manifestações junto às centrais de Fessenheim, Creys-Malville (local do reactor “breeder” Super-Phénix) e outras. 4.000 cientistas assinaram um documento contra este Plano, o “tout éléctrique, tout nucleaire”.

Em Fevereiro de 1975, foi tornado público o documento intitulado “Apelo dos 400”, que recolheu mais de 2.000 assinaturas de colaboradores do CNRS, do Collége de France, do Comissariat à l’Énergie Atomique e EDF, traduzindo o mau estar que o programa nuclear do governo francês gerava nas populações e contra a opção governamental de preterir o reactor do tipo urânio natural, gás, grafite, de tecnologia francesa, em benefício do PWR estadounidense, o que significava perder toda a investigação que tinha sido realizada pelos cientistas franceses, ficar na dependência da tecnologia estadounidense e do pagamento de licenças às empresas dos EUA na construção de grupos nucleares. Também se punha em causa as regras de licenciamento e aludia-se à necessidade de esclarecimento das populações para os perigos que corria.

As centrais sindicais CGT (de maior influência comunista) e CFDT (de maior influência socialista) tomaram posições muito críticas em relação ao programa nuclear francês, com a segunda com posições mais radicais.

Analisando o debate na Assembleia da República francesa no dia 14 de Maio de 1975, verifica-se que o Partido Socialista, o Partido Comunista, os Republicanos Independentes eram favoráveis à opção nuclear, enquanto os Radicais de Esquerda eram desfavoráveis. Os Reformadores, pela voz de J.J. Servan-Scheiber, afirmaram que ainda não se tinha realizado um debate sério sobre o assunto. Aquele deputado referiu os doze acidentes ou incidentes registados desde 1966 nas centrais de urânio enriquecido. A UDR, não contestando a energia nuclear civil, considerou que informação sobre o assunto devia ser divulgada e que as diversas associações de defesa do ambiente deviam ser verdadeiros interlocutores.

Na sequência das acções descritas, ocorreram acções violentas com duas bombas em Fessenheim, duas bombas em Monts d’Arrée, explosões que danificaram instalações da Framatome, empresa construtora do equipamento nuclear, o equipamento da mina de urânio da Margnac e o apartamento do Director-Geral da EDF.

Em várias localidades foram organizados referendos, nos quais os votantes se pronunciaram por um não ao nuclear.

Durante o ano de 1977, realizaram-se novas manifestações em Creys-Malville, numa das quais, com 20.000 participantes, houve um violento recontro com a polícia, de que resultou um morto, uma centena de feridos e a prisão de muitas pessoas.

No texto “La Dictature du Plutonium” Michel Bosquet[2] escreveu:

«O Ministério do Interior está a fazer fichas dos adversários e críticos do programa nuclear [francês] e estes estão a ser vigiados, desde Fevereiro de 1975, por um oficial de Segurança Militar, cujo nome é Chauvet.

Uma circular interna interdita os trabalhadores do CEA (Comissariat à l’ Énergie Atomique) de realizarem toda e qualquer crítica pública do programa nuclear francês. Uma circular interna da EDF considera a contestação deste programa como uma acção subversiva organizada “à escala nacional e mesmo internacional, com vista a entravar o bom funcionamento da sociedade actual”. Os direitos sindicais são ameaçados em diversas indústrias nucleares (nomeadamente na Framatome onde o delegado da CFDT está a ser objecto de uma campanha de difamação). Os funcionários do serviço central de protecção contra as radiações são obrigados a manter secreto os níveis de radioactividade que detectam».

A contestação ao programa nuclear francês continuou nos anos seguintes, encabeçada pelas associações de defesa do ambiente, mas os diferentes partidos mantiveram no essencial as mesmas posições. No entanto, o programa nuclear francês sofreu diferimentos, o que provocou uma crise de rendibilidade da empresa produtora de equipamento, a Framatome, a qual passou por várias reestruturações, alterando o nome para Areva, e vindo a ser absorvida pela EDF.

Como se vê é impossível ver aqui o dedo do “bloco soviético”, quando os intelectuais e cientistas marxistas e o Partido Comunista defendiam em França a “utilização pacífica” da energia nuclear, quando quem encabeçou as acções de protesto foram organizações ambientalistas, ideologicamente muito longe das ideias comunistas, com intervenções, algumas violentas, de um tipo muito diferente das dos comunistas e ainda com alguma influência do Maio de 1968.

Além disso, a oposição ao nuclear continuou após o desmoronamento do “bloco soviético”.

Também aqui não é possível ver «atividade dos lobbies ligados a outras formas de energia», quando muitas das acções surgiram expontaneamente por parte das populações e as organizações ambientalistas não se podem comparar aos lobbies dos combustíveis líquidos e gasosos, da energia nuclear, ou outros, esses sim ligados a poderosos interesses económicos.

Acções de contestação ao nuclear civil na República Federal Alemã[3]

Em 1972, registaram-se as primeiras reacções significativas à implantação de reactores nucleares na RFA, quando o primeiro reactor alemão (Gundremmingen) entrou em serviço em 1967. Depois Lingen em 1968 e Obrigheim em 1969.

A luta foi crescendo com a criação de numerosos grupos locais, verificando-se em 1973 e 1974 oposição às centrais de Breisach e Whyl, no primeiro caso argumentando-se que o vapor de água que sairia das torres de arrefecimento iria prejudicar as vinhas da vizinhança, alterando as características dos vinhos. Foram recolhidas 60.000 assinaturas obrigando a uma alteração do local da central. Também se registaram grandes oposições à construção da central de Whyl.

Dado que o Governo de Baden-Würtenberg aprovou o sítio de Whyl, a construção da central iniciou-se em início de 1975, o que provocou a ocupação do local por centena e meia de habitantes da zona, o que levou à suspensão das obras. A seguir, houve uma grande manifestação em que se verificaram recontros com a polícia e, tendo ocorrido nova ocupação do local alguns dias depois, sucedeu outra intervenção policial violenta. A ocupação durou 9 meses e nela tiveram relevância as mulheres de meia-idade das cercanias, numa acção inédita. Em Janeiro de 1976, um tribunal decidiu que os trabalhos não deveriam prosseguir antes de Novembro de 1977, ordenando a continuação dos estudos sobre o impacte da central no meio ambiente. Em 14 de Março, o tribunal administrativo de Fribourg-en-Brisgau decidiu interditar a construção da central.

Em Brockdorf, as primeiras manifestações reuniram centenas de pessoas mobilizadas pela “Iniciativa dos Cidadãos” e, em Novembro de 1976, juntaram-se 25.000 manifestantes, oriundos de vários pontos da RFA. Três horas de recontros entre os manifestantes e contigentes da polícia vindos de vários pontos do país, saldou-se em mais de uma centena de feridos e um prejuízo avultado para a empresa eléctrica. De seguida, o Tribunal Administrativo de Schleswig emitiu uma moratória baseada na não existência de uma solução para o armazenamento definitivo dos resíduos radioactivos.

Em Grohnde, cerca de 3.000 dos 15.000 manifestantes confrontaram-se com igual número de polícias, mas destruíram a vedação que protegia o local. A refrega durou três horas, registando-se três centenas de feridos.

Houve também grandes manifestações em Gorleben, onde se previa o armazenamento de resíduos radioactivos. Desde 1990, continuam as manifestações. Também em Wackersdorf nos anos 80, contra a instalação de uma unidade de reprocessamento, projecto abandonado em 1988 ou 1989.

Em meados de 1977, o Tribunal Administrativo de Muenster pôs em dúvida a validade constitucional do reactor reprodutor (ou “breeder”) de Kalkar.

Em contrapartida, em 10 de Novembro de 1977, realizou-se no estádio de Dortmund uma manifestação pró-nuclear que reuniu cerca de 40.000 pessoas. Esta manifestação foi convocada pela federação sindical DGB com o pretexto da defesa de milhares de postos de trabalho. Não foram certamente alheios a esta posição as pressões exercidas pelos partidos da coligação governamental, social-democrata e liberal, e a indústria nuclear alemã com relevo para a construtora KWU. Algum tempo mais tarde, a opinião pública teve conhecimento que a poderosa empresa de elctricidade RWE (Rheinisch-Westfälisches Elektrizitätswerke), que tinha então dezenas de milhares de funcionários, contribuiu com 5.000 manifestantes, a quem ofereceu o transporte até Dortmund, o almoço e 20 marcos por cabeça[4].

Nos anos seguintes, continuaram as acções de contestação, as quais atrasaram o programa nuclear até à inexistência de novas encomendas e conduziram a uma cada vez maior oposição à energia nuclear civil, que ainda hoje se manifesta, portanto depois da queda da URSS, em particular por parte do Partido Os Verdes.

Tal como nos EUA e França, é impossível ver-se aqui o dedo do “bloco soviético”, quando a República Democrática Alemã (RDA) tinha enveredado pelo nuclear civil, preferindo certamente que no país ao lado a população o aceitasse para não contaminar a sua, quando quem encabeçou as acções de protesto foram organizações ambientalistas, ideologicamente muito longe das ideias comunistas, com intervenções, algumas violentas, de um tipo muito diferente das realizadas pelos comunistas e ainda, tal como em França, com alguma influência do Maio de 1968. Além disso, essas organizações organizaram protestos na RDA contra a instalação de armamento nuclear e os mísseis SS-20, num dos quais chegou a ser preso o ambientalista português António Eloy[5], como o fizeram contra a instalação na RFA dos misseis Pershing estadounidenses.

Além disso, a oposição ao nuclear continuou após o desmoronamento do “bloco soviético”.

Também aqui não é possível ver «atividade dos lobbies ligados a outras formas de energia», quando muitas das acções surgiram expontaneamente por parte das populações e as organizações ambientalistas não se podem comparar aos lobbies dos combustíveis líquidos e gasosos, ou da energia nuclear, ou outros, esses sim ligados a poderosos interesses económicos.

Em Abril de 2023, a Alemanha encerrou as suas últimas três centrais nucleares.



[1] Adaptação do texto elaborado pelo autor do presente escrito para o livro O Que É a Energia Nuclear – Oportunidade em Portugal, de Domingos Moura, Frederico Carvalho, Rui Namorado Rosa, Alfeu Fernandes Forte, João Manuel Gaspar Caraça, António Mota Redol, João Barreto, João F. Martins, M.Rodrigues, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1978, agora desenvolvido. Informações recolhidas pela leitura sistemática das revistas de energia nuclear Nuclear Engineering International, Révue Génerale Nucleaire, Nucleonics Week, no Boletim de Informação Nuclear (JEN), revista de energia elétrica Eletrical World, de economia e tecnologia Usine Nouvelle e outras, eventualmente, como The Economist, Le Monde, Notiziario.

[2] Michel Bosquet é o pseudónimo de André Gorz (nascido Gérard Horst na Áustria), filósofo do grupo de Jean Paul Sartre, economista, com vários livros escritos sobre ambiente, fundador do jornal Nouvel Observateur.

[3] Ver Nota 1.

[4] António Mota Redol, “Indústria nuclear: A crise e as pressões (1)”, Diário de Lisboa, 28 de Outubro de 1978.

[5] António Eloy, Um Grão de Areia em 40 Anos de Cidadania e Ambientes, Lisboa, Esfera do Caos Editores, 2014, p. 36..

Acções de contestação ao nuclear civil nos EUA

Quase desde o início do programa nuclear civil existiram reacções adversas.

A opinião pública estadounidense tinha sido alertada para os incidentes em várias instalações nucleares: Chalk River em 1952, EBR1 em 1956, SL-1 e Idaho Falls em 1961 e reactor Fermi em 1966. E o muito grave acidente de Windscale em 1957, no Reino Unido, onde um incêndio provocou a libertação de produtos radioactivos, de que resultou algum tempo depois uma maior incidência de cancros na zona. De tal forma, que a designação da instalação foi alterada para Sellafield.

Em 1961, a Pacific Gas and Electric Company tentou iniciar a construção de uma central em Bodega Head, São Francisco, uma zona turística, mas, devido à oposição da população rural local e do Sierra Club, então a principal organização ecológica estadounidense, o projecto foi abandonado.

Em 1963, a Consolidated Edison pretendia construir uma central em Nova Iorque, em frente do edifício da ONU, a qual não foi por diante.

Em 1964, a mesma Pacific Gas and Electric Company pretendia construir uma central em Malibu Beach, uma zona sísmica.

Em 1967, vieram à luz do dia casos de cancro pulmonar nas minas de urânio.

Em 1968, verificara-se a contestação da população e da Cornell University á central de Bell Station no Estado de Nova Iorque, devido ao previsível aquecimento do lago Cayuga. Também a uma central no Rio Hudson.

Em 1968 e 1971, surgiram livros de Sheldon Novick e Richard Curtis sobre o perigo das radiações. Outros livros defenderam a opção nuclear.

A polémica a propósito da implantação da central de Monticello levou a autoridade licenciadora e fiscalizadora (a Nuclear Regulatory Comission – NRC) a aprovar regras mais apertadas. Um artigo de Ernest Sternglass na revista Esquire sobre o aumento da mortalidade infantil no Norte do Estado de Nova Iorque a partir de 1953, foi contestado pela Atomic Energy Comission (AEC), mas teve impacte na opinião pública. Idênticas afirmações foram realizadas quanto a mortalidade infantil nas vizinhanças das centrais de Peach Bottom, Humblot Bay, Shipping Port e Big Rock Point.

AEC decidiu, então, realizar acções de “esclarecimento” da população, o que deixou esta ainda mais desconfiada. No entanto, em 1957, a AEC tinha publicado um estudo (o Wash-740) em que se afirmava que centenas de pessoas morreriam no caso de um acidente grave e os prejuízos materiais seriam muito elevados, embora a probabilidade de tal acidente fosse pequeníssima. Esta última afirmação seria mais tarde reforçada na sequência do célebre Relatório Rasmussen (1974) – uma “bíblia” para os nuclearistas – o qual fazia uma análise de acidentes em várias sectores de actividade, concluindo pela pequeníssima probabilidade do acidente mais grave, a fusão do núcleo de um reactor nuclear.

O ano de 1970, foi um ano especialmente importante na contestação ao nuclear. Em 1969, tinha sido fundada por cientistas e estudantes do Massachusetts Institute of Technology (MIT) a organização Union of Concerned Scientists, a qual, com informação técnica, foi desfazendo parte da argumentação da AEC, sendo a NRC obrigada a emitir regulamentação mais severa.

Nos anos 70, também se tornaram notadas as posições anti-nucleares de organizações feministas.

Em 1974, a AEC deu lugar à Energy Research and Development Admisitration (ERDA), o que foi interpretado na época pelos grupos ambientalistas pela necessidade de substituir a AEC, um tanto “queimada” por falta de isenção. A NRC também não primava pela transparência, escondendo muita informação negativa, incidentes e, particularmente, fugas de radioactividade.

Em anexo a um texto intitulado “A ‘Crise da Energia’ e a defesa do meio ambiente”, publicado com o pseudónimo de Carlos Floriano pelo autor do presente texto no jornal Notícias da Amadora de 9 de Fevereiro de 1974, inseriu o mesmo autor um texto em que noticiava: «Fazendeiros de Brookfield têm tentado opor-se à construção dum lago de arrefecimento de água que circulará por reactores nucleares duma central a instalar naquela região. O lago ocupará 6.860 acres, pensando a Comissão de Energia Atómica (Atomic Energy Comission) americana que o terreno ocupado poderá vir a ser recuperado para a agricultura quando a central chegar ao fim do seu tempo de vida, mas que o lago modificará o ambiente da região, provocando nevoeiro e gelo. A água de arrefecimento dos reactores com partículas sólidas em suspensão e com produtos químicos dissolvidos terá um efeito nocivo sobre a qualidade da água do Rio Illinois. O advogado dos fazendeiros tem insistido na instalação de torres de arrefecimento em substituição do lago».

Na mesma ocasião, o mesmo autor publicava outra notícia elucidativa, revelando como os Estados pagariam a maior fatia dos prejuízos dos acidentes nucleares e em que se anunciava que tinha sido promulgada nos EUA a lei Price-Anderson Act, prevendo as indemnizações a pagar às populações em caso de acidente nuclear, contribuindo as empresas privadas com 95 milhões de dólares e o Governo com 465 milhões. Além desta lei que protegia a indústria nuclear dos encargos com os possíveis grandes acidentes, a mesma indústria era beneficiada com grandes subsídios, nomeadamente no domínio da investigação. Ou beneficiando dos resultados da investigação realizada pelos laboratórios e centros de investigação oficiais.

Em Março de 1975, deflagrou um incêndio no grupo 1 da central de Browns Ferry, de que era proprietária a Tenesse Valley Authority (TVA). Tinha três reactores do tipo BWR (boiling water reactor) construídos pela General Electric, o primeiro dos quais arrancou em 1974. Para detectar uma fuga de ar, um trabalhador utilizou uma vela, a qual incendiou um cabo eléctico, fogo que se propagou à restante rede de cabos para condução do reactor. Tal acontecimento foi o mais grave ocorrido numa central nuclear até então, obrigou a uma paragem do reactor durante um ano, e deu azo a uma reacção pública, dos meios científicos e da comunicação social, que obrigou a NRC a novas exigências na construção e condução de centrais.

Também em 1975, surgiram vários projectos legislativos destinados a bloquear a construção de centrais, mas tais projectos não foram por diante. Governo e indústria nuclear realizaram grandes campanhas pró-nuclear, nos jornais e na televisão, e muitos sindicatos manifestaram-se favoráveis à construção de centrais: o forte argumento da manutenção dos postos de trabalho!

«As empresas de energia nuclear e as empresas produtoras de electricidade estão a aumentar os fundos que despendem para combater a campanha antinuclear na Califórnia e, embora o presente esforço esteja a ser levado a cabo isoladamente, está a organizar-se progressivamente para participar na luta a nível nacional e estatal, especialmente nos Estados em que as campanhas antinucleares estão a ganhar importância. Em Atlanta, foi apresentado um relatório encomendado pela Westinghouse no qual se estimava que uma campanha nacional pró-nuclear custaria entre 5 e 15 milhões de dólares».

Em 1976, foram realizadas consultas populares nos estados de Arizona, Califórnia, Colorado, Montana, Ohio, Oregon e Washington que tiveram como resultado que uma maioria da população aceitava o nuclear, mas com percentagens de rejeição que variavam entre 29 e 42%.

Como resultado das acções de populações, de cientistas e de técni,cos, a NRC foi obrigada a exigir às empresas eléctricas que possuíam centrais nucleares a elaboração de planos de evacuação das populações das localidades próximas das centrais, tendo-se mesmo realizado alguns simulacros e sendo distribuídos comprimidos de iodeto de potássio às populações.

E foi precisamente em 1976, que foi atingido o pico de encomendas de grupos nucleares em todo o mundo: 44. Nos anos 90, caíram para 2 ou 3 por ano, nunca mais recuperando.

Em 7 de Abril de 1977, o Presidente Carter anunciou que o reprocessamento e a reciclagem do plutónio seriam adiados indefinidamente. A instalação de Barnwell, na Carolina do Sul não receberia financiamento federal; o programa estadounidense de reactores reprodutores seria reestruturado, o reactor reprodutor (“breeder”) de Clinch River deixaria de ser financiado; seriam financiados programas de combustíveis nucleares alternativos que não permitissem construir bombas atómicas; mas continuaria o investimento em enriquecimento do urânio, todavia embargando a exportação de equipamento que o permitisse realizar. Esta política recebeu a oposição da indústria nuclear interna e de vários países que apostavam no nuclear, em especial a França e o Reino Unido. Carter foi mesmo acusado de destruir o programa nuclear estadounidense e no mundo.

Quando em Março de 1979, se verificou o grave acidente no grupo 2 da central de Three Mile Island, na Pensilvânia, com grande libertação de produtos radioactivos para o exterior, grande parte da população da cidade que ficava perto, Harrisburg, capital do Estado, fugiu em pânico, quando teve notícia de que algo se passava na central, não confiando nas informações da direcção desta e das autoridades reguladoras, já muito descredibilizadas. Só muito mais tarde veio a público que parte do núcleo do reactor fundira, denunciando a falta de transparência que existia e ainda hoje existe na condução e fiscalização das centrais, com a colaboração das autoridades. A limpeza do grupo só ficou concluída em 1993 e custou, em dinheiro de hoje, 2.000 milhões de dólares.

Curiosamente, uns dias antes deste acidente, estreou-se o filme A Síndroma da China, dirigido por James Bridges, com Jane Fonda, Jack Lemon e Michael Douglas, o qual ficcionava um grave problema numa central nuclear, escondido pela direcção da central e por uma cadeia de televisão alertada para o assunto.

O acidente de Three Mile Island foi o início do “dobre de finados” da indústria nuclear dos EUA.

O número de reactores encomendados nos EUA nos anos 70 já vinha diminuindo drasticamente: 1970 - 14, 1971 - 16, 1972 - 30, 1973 – 35, 1974 – 20, 1975 – 4, 1976 – 3.

No momento do acidente, 129 reactores estavam aprovados, mas apenas 53 foram concluídos. Entre 1975 e 1983, foram cancelados 87 grupos.

Numerosas empresas cancelaram a encomenda de grupos nucleares, várias abriram falência.

Nas várias empresas que fabricavam reactores (Westinghouse, General Electric, Combustion Engineering, Babcock & Wilcox) foram fechando os respectivos departamentos. Com Chernobyl o golpe foi total. Ficou a Westinghouse Electric Cº que foi adquirida pela Toshiba em 2006, mas que acabou por a encerrar em 2018. Recentemente, parece ter ressuscitado.

De 1970 a 1980, o custo de um grupo nuclear arrefecido a água (PWR ou BWR) com cerca de 1.000 MW, subiu de forma exponencial, tendo passado de US$ 100/kW para cerca de US$ 1.030/kW. Em 1983, chegou a mais de US$ 1.600/kW. Era o resultado das crescentes exigências das entidades reguladoras, como a NCR nos EUA.

«Nos EUA, a oposição à energia nuclear fez que o período necessário para a obtenção de uma licença de construção de um reactor passasse de 8 meses em 1967 para 3,5 anos em 1977».

Por outro lado, os prazos de construção passaram, nestes anos, de 5 a 6 anos para 9 e mais. Houve grupos com 9 anos de atraso. Financeiramente era um desastre.

Um estudo do Department of Energy indicava que de 47 grupos nucleares estudados 36 apresentavam um custo final pelo menos duas vezes superior ao inicialmente previsto e, destes 36, 13 apresentavam um custo pelo menos quatro vezes superior. Todavia, num caso o custo foi multiplicado por dez e em outros dois por 15 vezes.

Em 1981, verificaram-se numerosas manifestações da população contra a construção da central de Diablo Canyon, na Califórnia o que conduziu a cerca de 2.000 detenções pela polícia. Foram seis anos de manifestações e referendos. A central estava a ser construída sobre uma falha sísmica. Em 22 de Setembro de 1981, após 13 anos de construção, o grupo 1 da central recebeu autorização para carregar o combustível. Dias depois as equipas que construíam o grupo 2 detectaram um grave erro de projecto nos dois reactores. Posteriormente foram detectados treze erros de desenho e cálculo. A divulgação do acontecimento teve uma repercussão enorme na confiança da população e das autoridades na indústria nuclear. O primeiro grupo só arrancaria em 1985.

Acrescente-se as ocorrências que se verificaram nos reactores nucleares da Westinghouse noa anos 80, em que os chamados geradores de vapor (steam generators) começaram a apresentar fissuras nas suas tubagens em aços especiais, com passagem de elementos altamente radioactivos do chamado circuito primário, que trás água e vapor de água a alta temperatura do núcleo do reactor, para o chamado circuito secundário, o qual leva o vapor de água à turbina, onde a energia eléctrica é produzida. Isto é, o vapor que chegava à turbina vinha contaminado com produtos altamente radioactivos. Nos geradores de vapor, normalmente 3 por reactor, realiza-se a permutação do calor entre os dois circuitos. A água com produtos radioactivos acabava por se derramar também no solo do edifício do reactor, atingindo quem lá trabalhava.

A Westinghouse teve de substituir os geradores de vapor em duas ou três dezenas de reactores em vários países. O alerta deu-se na central de Ringhals, na Suécia. Almaraz foi um das “contempladas”. Cada um deste conjunto de equipamentos, essenciais num reactor, custava cerca de 10% do alto custo de um reactor. Foi um prejuízo enorme para a empresa de equipamento e uma grande quebra de credibilidade para a indústria nuclear, principalmente de uma das suas mais importantes empresas. Sabia-se que as radiações reduziam a resistência dos materiais, neste caso os aços, mesmo especiais, mas era claro que a empresa produtora não soubera produzir os aços adequados. É verdade que nas centrais termoeléctricas clássicas surgiam, por vezes, corrusões das tubagens, mas que não atingiam a dimensão física e económica, nem a gravidade da situação descrita.

Vejamos alguns dos protagonistas da oposição ao nuclear nos EUA.

David Brower, nascido em 1913, iniciou-se como montanhista nos anos 30, pertenceu à entidade ambientalista Sierra Club, de que foi dirigente várias vezes, afastando-se em diversas ocasiões por divergências. Foi editor da University of California Press, em Berkeley. Opôs-se à construção de duas barragens no Grand Canyon e contra a central nuclear de Diablo Canyon, na costa da Califórnia. Nessa altura, a direcção do Sierra Club discordou da localização inicial por ser uma zona sísmica, mas acabou por concordar, contra a sua opinião, com um outro local. Browner era um convicto antinuclearista. Também se opôs à construção de uma central em Bodega Bay.

Em 1969, fundou em São Francisco a organização Friends of the Earth a qual se transformou em organização internacional em 1971, Friends of The Earth International, pela união dos grupos dos EUA, Reino Unido, França e Suécia, hoje com expressão em várias dezenas de países. Fundou outras organizações, dando à estampa numerosas publicações, numa actividade de cidadania muito intensa na defesa do meio ambiente, de denúncia de problemas sociais e outros. Chegou a ser candidato ao Prémio Nobel da Paz. Grande parte das acções de oposição descritas teve influência deste grupo Friends of The Earth,

Em 1969, Ralph Nader, nascido em 1934, advogado formado em Princeton e Harvard, fundou a organização Center for Study of Reponsive Law, que se propunha ajudar cidadãos em processos contra empresas e autoridades. Em 1965, tinha publicado o livro Unsafe at Any Speed., atacando as empresas automobilísticas por negligenciarem a segurança dos veículos. Publicou numerosos livros sobre diferentes temas relativos ao ambiente. Fundou várias entidades de defesa do consumidor entre as quais Public Citizen, dedicando a sua acção nesse domínio. Também fundou a Environment America e a Public Interest Research Group. Dedicou grande parte da sua acção nas lutas antinucleares, algumas das que anteriormente se referiram, levando processos a tribunal. Tem sido o mais importante defensor dos consumidores e ambientalista nos EUA, apreciado por milhões de estadounidenses.

Ralph Nader foi sujeito a campanhas na comunicação social para o desacreditar, por parte dos interesses estabelecidos que atacava. Foi candidato a Presidente da República por várias vezes pelo Green Party.

É impossível ver-se aqui o dedo do “bloco soviético”, verificando-se muitas acções mesmo depois do desmoronamento daquele bloco. É difícil que tantos cientistas, universitários, populações, autarquias, representantes locais, governadores, instituições oficiais, o Presidente Carter, organizações ambientalistas pudessem ser “agentes” do “bloco soviético”.

Também não é possível ver «atividade dos lobbies ligados a outras formas de energia», quando muitas das acções surgiram expontaneamente por parte das populações e as organizações ambientalistas não se podem comparar aos lobbies dos combustíveis líquidos e gasosos, da energia nuclear, ou outros, esses sim ligados a poderosos interesses económicos.

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