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Levar o cinema alternativo ao interior

Dois cine-clubes no distrito com actividade regular

Filmes com menos ritmo e mais profundidade. São produções que escapam ao apertado crivo comercial, mas que os cine-clubes divulgam na tentativa de estimular uma consciência crítica entre o público. Os cine-clubes recusam as produções mais fáceis e exploram um cinema libertador que leva o espectador a pensar. No distrito de Santarém, o Espalhafitas de Abrantes e o Cine-Clube de Torres Novas, garantem uma programação regular de cinema alternativo.

A revolução de Abril em Torres Novas. Será este o tema da segunda produção do Cine-Clube torrejano, uma das duas associações do género a funcionar no distrito, que não se limita a passar os filmes que circulam à margem dos circuitos comerciais.As entrevistas para o novo trabalho, que será apresentado nos 30 anos do 25 de Abril, já arrancaram. “Será ficção baseada em factos reais”, resume o realizador João Luz.Depois de produzir “O Dilema de Heimlich” - uma “curta-média metragem” de 38 minutos seleccionada para o único concurso de filmes nacionais “caminhos do Cinema Português” em Coimbra – a cinquentenária associação já se iniciou na segunda aventura cinematográfica.“Descobrimos que no dia 24 de Abril de 1974 o cine-clube teve uma sessão de cinema. É uma coisa que marca. Muitos dos dirigentes do cine-clube participaram na revolução de Abril como dirigentes associativos. É esta história que queremos contar”, revela o director do Cine-Clube, Nuno Guedelha.Na década de cinquenta, quando ainda não havia televisão, o cine-clube percorria as freguesias do concelho para mostrar a magia da imagem em movimento. O “Pátio das Cantigas” foi uma das fitas mais repetidas até porque a oferta cinematográfica para a máquina de projecção de 16 milímetros não abundava.A associação foi durante muito tempo, sobretudo nos anos que antecederam a revolução, um oásis no panorama cultural da cidade de Torres Novas. O cine-clube movimentava várias pessoas de todo os quadrantes sociais. Em comum tinham o gosto pelo cinema. O gosto de intervir numa altura em que não se podia intervir. “Era o inconformismo”.Hoje o objectivo continua a ser preencher o vazio cultural que continua a existir. “Fazemos com que as pessoas assistam a espectáculos que de outra maneira não poderiam ver”, realça o director.As máquinas de projecção do estúdio Alfa e Virgínia estão avariadas e por isso o cine-clube limita-se a passar filmes em vídeo e DVD na sede, no centro histórico da cidade, o que lhes possibilita uma escolha variada. “Quando escolhemos um filme escolhemos também com a intencionalidade de pôr as pessoas a pensar. De provocar. De ter pelo menos uma reacção”.O cine-clube colabora com a Gare, uma associação do Entroncamento, que dá os primeiros passos na projecção de filmes. Mas a projecção de filmes é apenas uma das mais recentes vertentes do cine-clube criado em 1959, que se assume como “associação cultural, não só direccionada para o cinema”. Os jovens membros da direcção da associação organizam exposições, noites de poesia, leitura, música e debates.O cinema japonês, temas e realizadores como David Lynch e Hitchcock já inspiraram os ciclos do clube às quintas-feiras e aos sábados. Neste momento corre o inovador ciclo de video-dança. “Escolhemos um filme que as pessoas não tenham oportunidade de ver num outro sítio. Uma excepção é “Gato Preto, Gato Branco” que por mais vezes que passe na televisão continua a encher a sala. FILMES QUE “LIBERTAM”Tal como Nuno Guedelha, também Carlos Coelho, um dos dirigentes do Espalhafitas, uma secção da Associação Palha de Abrantes, acredita que o cinema pode ajudar a mudar o mundo. “O cinema dito não comercial abre a visão. Costumo dizer que o comercial não é totalmente castrante, mas foca sempre para um determinado tipo de acção que monopoliza a mente das pessoas. Há outro cinema que pode libertar as pessoas. E esse cinema não existia em Abrantes”, explica Carlos Coelho.Na sessão normal o espectador não vai apenas ao cinema como vai perceber o cinema. O cine-clube prepara uma ficha com a sinopse do filme, biografia do realizador e uma explicação sobre o marco que foi a película.Os catálogos dos filmes das distribuidoras são muito diminutos. Há um conjunto de filmes que não estão à disposição e que implicam um grande encargo financeiro.A dificuldade em arranjar as películas de 35 milímetros foi o grande problema que o Espalhafitas enfrentou para organizar a semana do cinema espanhol, que levou a Abrantes 24 filmes em duas semanas. As películas vieram de Espanha com o apoio do Instituto Cervantes e da Embaixada de Espanha. A falta de legendas em alguns filmes acabou por afastar algum público, mas a associação sem fins lucrativos não teve possibilidade para encomendar o serviço por representar um custo muito elevado. Mas o Espalhafitas não desiste e quer continuar a trazer cinematografias de países europeus.De vez em quando o Espalhafitas tem que fazer cedências, levando um filme mais conhecido para chamar o público à sessão e equilibrar as contas. A programação é feita para que cada filme transmita alguma coisa ao espectador. “Tentamos fazer com que sejam obras de arte para que as pessoas descubram novas ideias. Tentamos que o filme seja um transmissor de ideias, valores e conhecimentos”.Um dos próximos ciclos organizados pelo Espalhafitas gira em torno do próximo cinema. “O Olhar de Ulisses”, “Cinema Paraíso” e “A Sombra do Vampiro” traduzem a importância da sétima arte. Alguns dos espectadores mais assíduos das sessões do Espalhafitas já se tornaram adeptos do cinema “libertador” e não conseguem regressar às salas de cinema e acompanhar os sucessos americanos de velocidade estonteante.Ana SantiagoA época dos realizadores “malditos”Os grandes cineastas da década de setenta e oitenta, apelidados de “realizadores malditos ou underground”, eram os mais procurados para as projecções do Cine-Clube de Torres Novas.No período que antecedeu a revolução dos cravos o cinema funcionava “uma arma para despertar consciências”, recorda Rui Pereira, activo participante associativo no cine-clube desde 1970, altura em que a associação era uma referência na área com projecção nacional.As obras de expressionismo alemão e os realizadores como Bertoluci, Renoir ou os irmãos Taviani inspiravam os ciclos temáticos do clube. O antigo dirigente ficou marcado para sempre pelo filme “Ivan, o Terrível” um filme do soviético Serguei Einsenstein, “uma trama de grande conteúdo pela disputa de um trono”.Cine-clube levou invisuais ao cinema Os dirigentes do Espalhafitas de Abrantes elegem o polémico filme de João César Monteiro “Branca de Neve” – que passa grande parte do tempo com o ecrã a negro - como o grande “sucesso” do cine-clube, com apenas um ano, pela especificidade da exibição. “Apareceram 30 pessoas que ficaram para o debate e quase tivemos que mandá-las embora”, descreve Maria Lurdes Martins, um dos elementos da direcção. Para o visionamento do filme o cine-clube convidou três pessoas invisuais e distribuiu fichas em braille. No final discutiram quem tinha teria visto melhor o filme. “Chegámos à conclusão que os invisuais ‘viram’ mais que nós. Acompanharam tudo o que ouviram de uma forma muito atenta”, conta.Os convidados pediram ao cine-clube para que fossem contactados mais vezes para ir ao cinema, mesmo às sessões normais.“A Selva”, “Delfim” e “O Fabuloso destino de Amèlie” também encheram a sala do Cine-Teatro São Pedro, em Abrantes. Mas na sessão Espalhafitas passam todo o tipo de cinematografias, desde a italiana, francesa à iraniana. É tudo uma questão de hábito.

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