Presidente da Federação de Agricultores do Distrito de Santarém diz que nunca foi o arauto da desgraça
Organização volta a ter instalações penhoradas e Amândio de Freitas aponta o dedo ao ex-secretário de Estado Rui Barreiro
Há quem ache que dramatiza demasiado as situações e não são só os seus adversários. Mas ele apresenta provas de que não é assim. Lembra que pediu a declaração de calamidade para a agricultura da região três vezes e que duas vezes foi atendido. Explica que os que eram a favor da Política Agrícola Comum defendem agora as posições que ele defendia há vinte anos. Conta a história do governante de Santarém que o tratava informalmente por tu enquanto lhe fazia falsas promessas.
O senhor, enquanto dirigente de associações de agricultores tem tendência para dramatizar. Quando abre a boca já se sabe que vem lá tempestade. É uma espécie de arauto da desgraça?A questão é de estilo, não é de conteúdo. Quando digo que uma situação é grave é porque ela é mesmo grave.Mesmo em alturas em que a grande maioria dos dirigentes associativos se mostrava optimista o senhor aparecia com um discurso negativo. Você nunca viu, nem a Federação dos Agricultores do Distrito de Santarém, nem a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) a queimar a imagem de um ministro da Agricultura em público. Quem fez isso foram os que diziam bem e que estavam bem com o poder. Os que apoiavam a reforma da Política Agrícola Comum (PAC). A reforma da PAC para eles foi sempre boa. Só agora é que não presta. Vejo agora dirigentes associativos a dizerem coisas que eu já dizia há vinte anos quando eles batiam palmas. Foi pena a Comunicação Social não ter dado notícia de muitas dessas posições na altura. Agora fazem primeiras páginas e eu fico embasbacado.O senhor anunciou a falência da agricultura tanta vez que alguma havia de acertar.E está falida. Se há 15 anos havia noventa mil agricultores e agora há dez mil; se foram arrancadas vinhas e pomares; se a produção diminui em todas as culturas, o que é que isso significa? Nós alertámos desde o início. Parece que tudo aconteceu de ontem para hoje mas não é verdade. Foi acontecendo e ninguém ligou ao que dizíamos. Tem ideia de quantas vezes pediu a declaração de calamidade pública para a agricultura ao longo destes anos? Uma dezena? Não. De maneira nenhuma. Esta é a terceira vez. Com tantos anos de actividade fazer esse pedido três vezes não é nenhum exagero. E duas vezes foi decretada a situação de calamidade para a agricultura do Ribatejo, o que prova que tínhamos razão. Digo-lhe mais, a primeira vez que pedimos a declaração de calamidade pública, até ao nível das Associações ligadas à CNA havia quem considerasse que era um exagero. Lá está.O ministro da Agricultura estava de férias em Vilamoura e disse o mesmo. Que era exagerado. Mas três semanas depois interrompeu as férias e decretou a calamidade pública. Foi visitar o Campo de Vila Franca connosco com os botins calçados. Não lhe pergunto quantas vezes esteve de acordo com a Política Agrícola porque, sendo do contra, esteve sempre contra.Dentro da política agrícola não estamos contra tudo. Apoiámos algumas medidas. Mas há coisas que não podemos admitir. Ainda há pouco tempo, na Comissão Parlamentar de Agricultura eu disse que se mandasse alguma coisa em Bruxelas a primeira coisa que fazia era fazer um decreto estabelecendo que quem desse um tostão que fosse aos agricultores para não produzirem seria acusado da prática de um crime e tinha que responder em Tribunal. Há muitos agricultores que não vão gostar de ouvir isso.Acredito. São os que se andam a encher à pala disso. Só esses, porque os que produzem oitenta por cento do produto agrícola bruto não recebem quase nada. Só migalhas. Porque é que vieram tantos milhões para a agricultura e o sector está a definhar? Agora já toda a gente fala mas nós andámos anos e anos a pregar no deserto e a ser acusados, como disse há pouco, de sermos arautos da desgraça. Quanto ganha como presidente da Federação de Agricultores?Novecentos euros.O senhor é agricultor? O que produz?Sou viticultor. E durante 19 anos fiz tomate. Tem terras suas?Tenho pouca coisa mas tenho. Quando fiz tomate arrendei muita terra.Quanto recebeu de subsídios enquanto agricultor ao longo da sua vida? Nada. O tomate nunca teve subsídios se não agora. A vinha nunca teve. Os hortícolas também não. Os hortícolas nunca fizeram parte dos produtos beneficiados pela Comunidade. Isso era só para o leitinho, a carne e os cereais. Os grandes apoios sempre foram para as culturas que interessavam aos alemães, aos franceses, etc. Os do Norte da Europa recebem 6 e 7 vezes mais apoios que nós e para isso acontecer acabaram com os nossos produtos tradicionais. E depois querem uma concorrência leal e competitividade. A mim o que me espanta é ainda conseguirmos produzir alguma coisa. Uma costela germânica e um coração bem vermelhoTem uma voz trovejante e embora tenha perdido muito peso nos últimos dois anos, mantém um porte físico respeitável. Amândio Braulino de Freitas, 60 anos de idade, foi um dos fundadores, em 1978, da Federação de Agricultores do Distrito de Santarém e é seu presidente desde essa altura.Apesar de nem sempre ser levado a sério dada a sua tendência para dramatizar as situações, sabe do que fala e na actual situação começam a fazer sentido muitos dos alertas que lançou, ao longo das últimas duas décadas, sobre a destruição da agricultura que estava a ser levada a cabo. Nasceu na rua Marquês de Tancos em Benfica do Ribatejo, filho de uma família de agricultores. Fez a escola primária e começou a trabalhar com o pai, João Freitas, na agricultura aos 13 anos. Do progenitor herdou a capacidade de trabalho. Da parte da mãe, Henriqueta Lucas Braulino, o temperamento arrebatado. Diz que os Braulinos têm sangue germânico. “São descendentes de um conde alemão que se estabeleceu na zona”.Quando era adolescente jogava futebol e acreditava que iria suceder ao mítico guarda-redes Costa Pereira, na baliza do Benfica. Chegou a ter uma oportunidade de ir mostrar os seus dotes ao clube da Águia mas o pai cortou-lhe as asas. Para se libertar da aldeia e conhecer mundo alistou-se como voluntário nos pára-quedistas aos 19 anos. Em Angola, corria o ano de 1972, brilhou como guarda-redes de uma selecção das forças armadas. E foi em Angola que o capitão Lousada, seu comandante, lhe explicou o que era a guerra colonial ao perguntar-lhe se achava que o local onde estava poderia ser terra portuguesa se ficava em África e os naturais eram negros. “Esta é a guerra do capital, explicou-me ele. E a partir daí comecei a ver as coisas de outra forma. Descobri que o inimigo éramos nós”, confessa.Foi presidente da Junta de Freguesia de Benfica do Ribatejo, durante três mandatos , dois dos quais seguidos, eleito pela CDU numa terra tradicionalmente socialista. Em 2009 recandidatou-se mas foi derrotado. Sofreu outro desaire quando tentou fundar uma Federação Nacional de Produtores de Tomate. Diz que a iniciativa foi barrada pelos industriais. Apesar disso criou uma denominada Associação Nacional de Produtores de Tomate que tem existência legal mas reduzida representatividade. Diz com orgulho que em casa são todos adeptos do Benfica e militantes do Partido Comunista Português e garante que nunca falhou uma festa do “Avante”. Nem ele nem ninguém. Tem dois netos, de 15 e 8 anos de idade e uma neta com 2 que nunca falharam a festa. O filho Luís também não. O filho não foi para agricultor mas quando era miúdo e andava a ajudar o avô materno chegou a dar-lhe esperanças de lhe seguir as pisadas. Mas foi por breves segundos. “Um dia virou-se para o meu sogro e disse-lhe que não se preocupasse que quando fosse grande iria tratar da terra. Tinha 13 anos e começou logo a explicar como iria fazer. ‘Ali vai ficar uma pista de moto-cross’. Ainda hoje o meu sogro fala naquilo”.Muitos casacos tem o senhor Rui BarreiroQuantas vezes já esteve penhorada a sede da Federação dos Agricultores do Distrito de Santarém, onde nos encontramos, por dívidas às Finanças?Duas vezes. E agora está penhorada outra vez, mas só o piso inferior. Já esteve em hasta pública duas vezes mas não houve ofertas. Porque se arrasta esta situação?Porque o Estado não nos paga o que deve desde 1999. É dinheiro relativo a cursos de Formação Profissional. São oitenta mil euros. Deve-nos muito mais mas são dívidas recentes. Geralmente a Formação Profissional é paga com um ano ou um ano e meio de atraso. Para levantar as anteriores penhoras a Federação teve que pagar. Pagámos para evitar que a sede fosse vendida por dez reis. De uma vez pagámos 35 mil euros, de outra 30 mil e de outra 17 mil. Pagámos nestes últimos sete anos milhares de euros às Finanças, relativos a coimas, juros de mora... mas o Estado deve-nos mais a nós do que nós ao Estado. Quanto devem às Finanças nesta altura?Cerca de 66 mil euros.Tem esperança que o Estado pague?Eu tive esperança que um senhor que passou pelo Governo deste país recentemente, que é nosso conterrâneo aqui de Santarém resolvesse o problema. O Eng.º Sevinate Pinto, resolveu parte do problema quando foi ministro da Agricultura. Depois dele sair tivemos uma reunião com o senhor secretário de Estado das Florestas e Desenvolvimento Rural, o tal nosso amigo Rui Barreiro e ficámos convencidos que ele iria resolver o resto. Na primeira reunião connosco ele até disse que era um absurdo e uma parvoíce o assunto ainda não estar resolvido. Mudou de ideias? No fim da reunião pediu-nos para escrevermos uma carta a oficializar o assunto. O pessoal que foi comigo até achou que ele tinha tido em conta o facto de ser de Santarém e me conhecer há muitos anos. Escreveram a carta?Escrevemos. Precisávamos da resposta dele a dizer que estava tudo encaminhado, para apresentarmos nas Finanças uma vez que estávamos penhorados mais uma vez.E ele respondeu?Nem àquela nem a muitas outras cartas que lhe fomos escrevendo. Um dia estive com ele no Governo Civil de Santarém. Pedi-lhe desculpa por estar a abusar e perguntei-lhe se lhe podia entregar uma carta e as cópias de todas as outras que já lhe tinha escrito antes. ‘Eh pá, nunca recebi nada!’, disse-me. Ele tratava-me por tu e eu por senhor secretário de Estado e por senhor, como era meu dever. Meteu a carta no bolso e foi até hoje.Nunca mais lhe escreveu?Escrevi-lhe mais uma vez quando faltavam 15 dias para as eleições. Disse-lhe que ele devia ter muitos casacos e que as cartas iam ficando nos bolsos dos que ele deixava de usar e que talvez fosse por isso que nunca nos respondia. Mas também lhe disse que acreditava mais que ele nos ignorava porque nós defendemos a agricultura familiar e o mundo rural, coisa que pessoas como ele defendem nas campanhas eleitorais mas das quais se esquecem logo que são eleitos. A Federação queria que o secretário de Estado resolvesse o assunto só por ser de Santarém?Queria que nos fosse feita justiça. Ele não teve tempo para fazer um acerto de contas com a nossa organização embora tivesse em seu poder toda a documentação necessária na sua posse para o fazer. Tenho ali um ofício do secretário de Estado anterior, com o número do processo, o montante da dívida e tudo, em que ele diz que não nos pode pagar porque nós devemos às Finanças. Isso é kafkiano.Pois é. Para recebermos precisamos confirmar que não devemos nada às Finanças mas nós devemos às Finanças porque o Ministério da Agricultura não nos paga.Como é que esta história começou, afinal? Esta situação diz respeito ao Quadro Comunitário de Apoio de 1999. Com a mudança de QCA, demorou três ou quatro anos para haver dinheiro para nos pagar. É sempre assim, as dívidas de um QCA só são pagas quando vem dinheiro do seguinte. No dia em que o dinheiro chegou eu soube e telefonei para o IFADAP, entidade que tratava daqueles assuntos na altura. Perguntei porque não transferiam o dinheiro. E qual foi a resposta?Ao fim de uns dias telefonaram a pedir documentos que confirmassem que não devíamos nada às Finanças ou à Segurança Social. Foi apenas uma manobra. Eles tinham com eles documentos que atestavam isso e cujo prazo de validade só acabava três semanas depois.Porque não apresentaram novos documentos?Lá está. Porque entretanto, devido ao atraso nos pagamentos, já estávamos outra vez em dívida com as Finanças. O dr. Branco, que estava à frente do IFADAP e que sabia que o dossier estava fechado, encontrava-se de férias e eu não o quis incomodar. Quando regressou já tinham passado os prazos e ele não podia fazer nada. O que é certo é que temos provas que quando o dinheiro veio eles tinham toda a documentação necessária para nos pagar. Isto um dia tem que ser contado.Já está a ser contado. Esta casa tem andado a substituir o Estado no capítulo da formação e o Estado leva-nos à falência porque não paga. Infelizmente não é só connosco mas é uma anormalidade. O mais grave é sabermos que o Estado não tem dinheiro para nos pagar o que deve mas tem dinheiro para dar a outras organizações pela porta do cavalo. Para alugar instalações a preços altos para não sei o quê...(alusão às instalações do CNEMA alugadas na altura em que Rui Barreiro foi secretário de Estado das florestas para instalar os serviços florestais e de veterinária). Foi O MIRANTE que denunciou isso.“Se algum dia me virem sem bigode podem escrever que o Estado já nos pagou”O problema da dívida da Federação dos Agricultores do Distrito de Santarém às Finanças pode vir a ter consequências para os dirigentes daquela organização, a começar pelo próprio Amândio de Freitas. “Se eles chegarem a vender todo o património da Federação, coisa que eu espero nunca venha a acontecer, a bem da justiça, vendem ao desbarato e se não conseguirem o total que está em dívida avançam para o meu património”. A solução é conseguir que o Estado, que deve mais à Federação do que esta às Finanças, faça uma espécie de “acerto de contas”.Embora tenha um espírito optimista, o dirigente associativo até já fez uma promessa que acabou por revelar no decorrer da entrevista quando lhe perguntámos se alguma vez iria cortar o bigode. “Quando me virem sem bigode podem escrever que o Ministério da Agricultura pagou a dívida à Federação. Nem precisam de me telefonar a confirmar. Até agora só tinha dito isto à minha mulher. Uso bigode desde os 19 anos quando fui para a tropa e nunca o cortei nestes 40 anos”.
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