Salvou-lhe a vida mas também já lhe roubou uma namorada
O MIRANTE juntou o matador Vítor Mendes e o cirurgião taurino Luís Ramos para uma conversa sobre festa brava e não só. “Afición” é o amor a uma arte, neste caso a tauromaquia. Para Vítor Mendes, célebre matador de toiros português, e Luís Ramos, cirurgião taurino, é mais: memórias de infância, adrenalina, missão de vida, garra, medo e orgulho. Partilham o mesmo sentimento, foram muitas vezes paciente e clínico, mas são sobretudo amigos. O MIRANTE juntou os dois na equipadíssima enfermaria da Praça de Touros de Vila Franca de Xira.
É como se sabe: podemos ser grandes e essa imponência saltar logo à vista, nos trejeitos, na postura do corpo e no olhar seguro - e estamos a falar de Vítor Mendes - ou podemos ter a mesma grandeza, mas movimentos calmos e um olhar conhecedor, fruto de anos de estudo e prática, em cirurgia taurina, por exemplo. E sim, estamos a falar de Luís Ramos.
“Sempre vivi em Vila Franca de Xira e sou fascinado por tauromaquia desde criança”, começa por dizer o cirurgião geral do hospital da cidade, 45 anos e há 17 o médico principal da enfermaria da Praça de Touros Palha Blanco. Mas nunca teve ganas de saltar para dentro da arena e nem foi o medo que o impediu: “A minha vocação era medicina, sentia que era isso que gostaria de fazer”, confessa. Vítor Mendes, que chegou uns minutos mais tarde, entra na sala de reuniões - situada no piso superior da enfermaria - e crava os olhos em nós. Foi como se entrasse um furacão contido. Tem 58 anos e mantém uma forma física invejável e uma coragem intrínseca. Não é explicável. Sente-se. Vítor cumprimenta o amigo Luís, olham a Lezíria através da janela e percebe-se a cumplicidade. Afinal, o toureiro já esteve nas mãos do cirurgião várias vezes. Confiou-lhe a vida. O médico devolveu-lhe a confiança em competência.
Uma ferida mal avaliada pode levar à morte
“É como quando enfrentamos um toiro, é preciso ter técnica, mas isso muitos têm. O essencial é a confiança em nós e o conhecimento que temos do animal”, diz Vítor Mendes, fazendo o paralelo na confiança que encontra na capacidade do cirurgião Luís Ramos. O medo existe para ambos. Afinal, se Vítor pode sucumbir à custa de uma cornada, uma ferida feita pelos cornos de um toiro, se for mal avaliada, pode fazer com que um toureiro se esvaia em sangue até à morte.
Luís Ramos conhece o peso dessa responsabilidade. É especialista em cirurgia taurina, membro da Sociedade Espanhola de Cirurgiões Taurinos e um dos defensores da criação de uma Associação Nacional de Cirurgiões Taurinos (ver caixa). Vítor Mendes é um paciente diferente. “Temos que confiar no médico que nos vai tratar. Essa ligação ajuda na recuperação”, diz o toureiro. O cirurgião explica como essa frase faz todo o sentido. “O Vítor já levou dezenas de cornadas, já foi operado também dezenas de vezes. Sabe o que tem de fazer e o tempo que uma ferida pode demorar a sarar. A sua experiência e a sua vontade de voltar o mais rapidamente à arena torna-o um paciente especial, com uma capacidade de recuperação impressionante”, revela Luís Ramos.
Vítor Mendes, ao contrário de Luís Ramos, nasceu em Marinhais (Salvaterra de Magos), mas desde cedo manteve uma relação estreita com Vila Franca de Xira. A paixão pelos toiros herdou-a do pai, um aficionado da festa brava que acabou por ter um filho que foi um dos mais brilhantes matadores portugueses, conhecido mundialmente. Também os três filhos do toureiro são aficionados, assim como os três de Luís Ramos. Os amigos partilham muitas paixões: são ambos do Sporting - gostam de assistir a jogos juntos - e até já se apaixonaram pela mesma mulher. “Ele já me roubou uma namorada”, conta o toureiro, no meio de gargalhadas. O cirurgião, mais tímido, baixa o olhar e garante que “não foi bem assim”. Riem os dois. Afinal, o cirurgião já salvou a vida a Vítor Mendes. As contas estão mais do que saldadas. E, mesmo que não esteja sequer perto de VFX, quando acontece um acidente com um toiro, é a Luís Ramos que o toureiro recorre.
Vítor Mendes já telefonou a Luís Ramos para este o operar
“Há uns anos estava no campo e levei uma cornada na coxa. Olhei para a ferida e vi que era profunda. Liguei ao Luís para vir ter comigo aqui [à enfermaria da Praça Palha Blanco] para que me pudesse operar”, conta Vítor. “É verdade. Recebi um telefonema - acho até que era fim-de-semana - e ele contou-me que tinha levado uma cornada. O corno do toiro tinha-lhe perfurado a coxa em 6 ou 7 centímetros. E foi mesmo aqui que o operei”, recorda o cirurgião.
Na verdade, a enfermaria da Praça de Touros Palha Blanco - apesar de estar equipada para a realização de cirurgias, não tem essa função. “Serve para estabilizar os feridos até serem encaminhados para o hospital”, explica o médico. Mas se for necessário realizar uma cirurgia, na praça de VFX, estão preparados para isso. E a sala não serve apenas para tratar toureiros. Todos são ali tratados: forcados, matadores, cavaleiros, bandarilheiros, até alguém da assistência que se possa sentir mal. Dezenas, largas dezenas de feridos tauromáquicos tratados, mas Luís Ramos já tratou largas dezenas de feridos ali mesmo, mas é humilde. Foi Vítor Mendes a “picar” para que o cirurgião contasse que ali já operou um bandarilheiro espanhol que fizera uma fractura da bacia. Em dias de tourada, a equipa está sempre a postos: “Por norma, fazem parte [da equipa] três médicos - um deles ortopedista -, três enfermeiros e três auxiliares”. E nenhum deles recebe um cêntimo pelo trabalho.
“Tiro sempre férias em Outubro, na altura da Festa do Colete Encarnado. Tenho de aqui estar na enfermaria”, revela o cirurgião. Sublinhamos: não é remunerado. Ninguém da equipa o é. Todos o fazem pela paixão à festa brava. Para estes, Vítor Mendes será sempre uma referência. Um toureiro temperamental e agressivo. Sempre o foi, o que agradava ao público. Aliás, ficou conhecido por isso. Garante que a sua arte esteve sempre ligada “a um grande conhecimento e concentração no toiro”. “É preciso querer muito ser toureiro, ter garra, ter técnica, claro, mas acima de tudo ter inteligência, conhecer bem o animal que temos à nossa frente e isso nem todos têm”.
Vítor Mendes já não contabiliza as cirurgias que fez. Tem o corpo desenhado a cicatrizes e vive bem com as dores que lhe recordam as vitórias, porque afinal são todas elas marcas de uma guerra que sempre enfrentou por amor. Por isso, não hesita um segundo em responder à pergunta se “As touradas vão acabar?”. “A tourada nasceu na rua, depois é que se organizou o espectáculo. Em Portugal, ainda é o povo quem mais ordena. A tourada não acaba enquanto as pessoas não quiserem”.
O matador que esteve para ser advogado
Vítor Mendes passou a fronteira em 1978, um ano depois da última corrida de touros de morte em Portugal. Era um miúdo e a tauromaquia, em Espanha, funcionava ao mais alto nível. Nem todos os que chegaram conseguiram singrar. Vítor Mendes fez muito mais do que isso: conseguiu brilhar. Ao mesmo tempo, fez a vontade ao pai e inscreveu-se no curso de Direito, que não concluiu.
Médicos de VFX convidados para congressos em Espanha
Um dos sonhos de Luís Ramos é criar uma Associação Nacional de Cirurgiões Taurinos. “Era importante reunir as pessoas que poderiam falar e trocar ideias sobre o tema, mas isso ainda não foi possível”, lamenta. Mas a equipa da enfermaria da Praça Palha Blanco já foi várias vezes convidada a participar e a apresentar trabalhos científicos sobre o tema no Congresso de Cirurgia Taurina, em Espanha. “Existe um cirurgião espanhol que é um especialista na área: é o Dr. Henrique Crespo. Tenho aprendido muito com ele”, revela o cirurgião.