“Uma mulher gosta de um homem que se acha o máximo”
A coautora de Uma Aventura tem tantas histórias para contar como aquelas que já contou em livros de aventuras e numa autobiografia intitulada “Tudo Tem O Seu Tempo”, lançada em 2012, pela Caminho.
Ana Maria Magalhães teve cancro e decidiu que tinha de passar para o papel as memórias de família. Uma parte importante da sua vida passa pelo Ribatejo. Em Salvaterra de Magos deu as primeiras aulas e apaixonou-se por marialvas. E escreveu Uma Aventura no Ribatejo. Tempo para recordar outros tempos quando a autora se sentia enfeitiçada por marialvas, gente galanteadora e atraente, com quem não queria casar mas gostava de namorar.
“Quando atravessávamos a ponte de Vila Franca de Xira, onde ainda se pagava portagem, tínhamos a agradável sensação de estar a pagar bilhete para entrar noutro mundo”. É assim que a escritora começa por descrever a altura em que o Ribatejo entrou na sua vida, tinha ela 15 anos. Era a década de 60 e Ana Maria Magalhães teve o privilégio de conhecer a terra no seu estado mais puro: “Na lezíria um cavalo não é só um cavalo. (...) Ser campino não equivale a ser vaqueiro. Touradas não são romarias”, escreve na autobiografia “Tudo Tem O Seu Tempo”, lançada em 2012, pela Caminho.
Decidiu escrever este livro quando, em 2002, soube que tinha cancro. “Pensei que ia morrer e eu sou a guardiã de muitas histórias de família, queria que os meus netos as conhecessem”, explica. Enquanto durou o tratamento - fez quimioterapia e radioterapia, ficou careca - “entreteve-se” a recordar tudo o que tinha vivido e ouvido contar na família. O padrasto, João Ramalho, é de Salvaterra de Magos. Foi ele quem devolveu o amor a Tareka - nome pelo qual é conhecida a mãe da escritora - e os apresentou ao Ribatejo. Ainda hoje a mãe mora na terra que no início a olhou com espanto e desconfiança...
Ana Maria Magalhães tem hoje 70 anos e durante quatro décadas foi professora de Português e de História de Portugal do segundo ciclo - deu aulas durante quatro anos em Salvaterra de Magos. Pesquisar era algo que sabia fazer bem e quando mostrou o que tinha escrito ao marido - Zeferino Coelho, editor da Caminho (editor de José Saramago, o único Nobel português da Literatura) -, este disse-lhe que teria de publicar a obra. “Porque é um livro que mais do que contar histórias de família, retrata uma época”.
Durante dez anos - entretanto lutou e venceu a doença - dedicou-se a puxar pela memória, a chatear primos afastados, a recolher o máximo de informação para não faltar à verdade e não esquecer o pormenor. “Foi difícil. Houve momentos alegres e outros tristes. Era como se estivessem sentadas à minha mesa as pessoas que já tinham partido e que me faziam tanta falta. Tive de ir fazendo paragens...”.
O jovem ribatejano que se apaixonou pela viúva com três filhos
“A minha família paterna é do Norte, mas vieram para Lisboa para o filho estudar. O meu pai era médico e casou com a minha mãe, também ela filha de um médico. Tiveram três filhos. O meu pai morreu quando eu tinha dez anos”, conta, de rajada, a escritora. Tareka, a mãe, ficou viúva aos 29 anos, com uma filha de 10 anos, um de nove (o famoso actor Tozé Martinho) e um terceiro filho de apenas cinco anos. Foi quando, um ano depois, entrou na vida da família José Ramalho.
“Estávamos na praia e lembro-me de ver um rapagão lindo, rodeado de amigos e amigas, mas que não tirava os olhos da minha mãe”. O ribatejano tinha menos sete anos que a mãe da escritora, era solteiro, rico e de boas famílias. “Quando decidiram casar foi um escândalo. Ninguém acreditava que fosse para durar”. Continuam casados, 55 anos de um amor que a escritora confessa nunca ter visto: “Não conheço ninguém que tenha sido amada como a minha mãe é”.
Até para que os dois namorassem era uma complicação: “Os amigos dele podiam quase ser filhos dela e os amigos dela podiam quase ser pais dele”, recorda Ana Maria Magalhães, com um sorriso. “O meu padrasto apresentava-se com a sua namoradinha e ela vinha com três marmanjos - os filhos - o que não era suposto”. Mas Ribatejo é coragem e José Ramalho mostrou isso mesmo.
Foram viver para a Quinta das Gatinheiras, em Salvaterrra de Magos e a sua vida mudou radicalmente. “O ambiente era completamente diferente de tudo aquilo que conhecia: de repente demos connosco na terra dos touros e dos cavalos, do fandango, dos campinos, dos barretes...”, recorda. “Eu gostava muito do convívio, de ir à tourada, de andar a cavalo - nunca o tinha feito - e de tomar banho no Tejo”. E os marialvas enfeitiçavam-na. “Eram muito galanteadores e atraentes, eu não estava nada interessada em casar com eles mas achava muita graça a namorar com eles”, revela, sem rodeios. Namoriscou com alguns e guarda a imagem desses tempos que pareciam mesmo “de outro mundo”. “Ouvia-os a cantar o fado, alguns tocavam viola, pegavam os toiros, eram vaidosos, arrojados. Achavam-se o máximo e uma mulher gosta de um homem que se acha o máximo”, admite.
Tozé Martinho “tornou-se mais ribatejano que os ribatejanos”
As recordações do Ribatejo são muitas - parte do seu coração será sempre da lezíria - mas recorda-se sempre de certa vez ter ido a uma tourada e do forcado sair ferido, de maca. “Quando passa à nossa frente, todo ensanguentado, salta da maca e volta para a arena porque não tinha feito a pega. A praça inteira, de pé, a aplaudir. Isto não acontecia em mais sítio nenhum do país”, sublinha. Mas era também uma terra que, para uma rapariga de Lisboa, seguia costumes difíceis de entender. “Um dia a minha mãe viu um trabalhador rural bater na mulher e foi interferir. Foi a mulher quem se irritou ao dizer: ‘Ele está a bater no que é dele’”.
Mas quem mais se apegou ao Ribatejo foi Tozé Martinho. “O meu irmão foi forcado, toureou a cavalo, namorava quantas raparigas houvesse. Foi um verdadeiro marialva”, lembra Ana Maria Magalhães. “Ia vestir as camisas aos quadrados que eram do meu padrasto. Em pouco tempo tornou-se mais ribatejano que os ribatejanos”. A escritora recorda que o irmão até falava como a gente da terra. “Um dia disse-me que tinha arranjado uma namorada com muito sainete. Eu nem sabia o que essa palavra queria dizer, mas era o mesmo que dizer que tinha muito salero”, conta, de sorriso rasgado.
A casa das Gatinheiras era o palco de todas as festas e o refúgio da família. “A prima que se tinha separado ia para lá curar as mágoas, uma outra que tinha descoberto que tinha sido adoptada também para lá ia. A casa em Salvaterra de Magos tinha o conforto de um presépio”, diz a escritora, emocionada. O Ribatejo entranhou-se de tal forma na família que uma das suas alunas de Salvaterra casou com o irmão mais novo, Manuel, cirurgião plástico. “Ela era de uma família humilde, mas era de uma inteligência extraordinária. Hoje é doutorada e continuam casados”, revela. “Enquanto não fizemos amigos na terra continuámos a ser apenas visitantes”, escreve Ana Maria Magalhães na autobiografia. Hoje, o Ribatejo é mais uma costela da família.
A filha da criada que mudou a vida da família
O trisavô da escritora era de Moncorvo e “fez uma fortuna disparatada”. Tinha terras, fábricas de seda e de loiça e “era uma lenda na terra”. Tinha dois filhos gémeos e uma filha, mas um dos gémeos morreu e a filha não lhe deu netos. O outro gémeo era brilhante mas instável e metia-se com as empregadas da casa. Até que engravidou a Júlia, de 15 anos, loura, de olhos azuis. “Deixou-a grávida, voltou para o Porto, onde vivia, e a criadita foi despedida”. Mas todos em Moncorvo sabiam que a pequena era neta do lendário Oliveira e então chamavam a criança de “Oliveirinha sem rama”.
Certo dia, atravessava o milionário a praça de Moncorvo quando a neta, a pedido de um vizinho, lhe foi pedir a bênção. Quando o homem lhe perguntou o nome, a criança respondeu: “Eu sou a Oliveirinha sem rama”. Nessa mesma noite, o trisavô da escritora levou a menina para a criar. “A minha avó, com esta frase, alterou para sempre o destino da nossa família”.
Uma Aventura no Ribatejo tem como personagens a família da escritora
Num dos livros da colecção, Ana Maria Magalhães coloca as personagens principais - os cinco jovens - a dormir na casa das Gatinheiras. Estão lá os nomes da mãe: uma personagem “Tareca” em vez de Tareka, e as alcunhas que as suas duas meias - irmãs receberam - Amêndoa e Gatuxa - pois a mãe da escritora teve duas filhas com João Ramalho, que também aparece no livro.