Dois esclarecidos cidadãos que andaram pela política activa até ficarem bem vacinados
Conversa entre o engenheiro Hermínio Martinho e o advogado Santana-Maia Leonardo.
O engenheiro agrónomo Hermínio Martinho ficou conhecido por ter fundado o PRD (Partido Renovador Democrático), em 1985, e ter conseguido uma votação a rondar os 18% nas primeiras eleições em que participou. Santana-Maia Leonardo foi vereador da oposição nas câmaras municipais de Ponte de Sôr e Abrantes e recentemente foi falado por ter sido advogado do jovem agredido pelos filhos do embaixador do Iraque. Os dois dizem que nunca viram o Canal Parlamento e que não irão voltar à política activa. Mas o facto de estarem vacinados não significa que estejam com ouvidos e boca tapados.
Santana-Maia Leonardo diz que já está habituado a ver certos portugueses muito escandalizados quando ouvem alguém dizer aquilo que eles próprios dizem. A confissão é feita a propósito da declaração do presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, sobre o facto dos países do Sul da Europa gastarem muito dinheiro em “copos e mulheres”.
“Nós escandalizamo-nos quando outros dizem aquilo que nós próprios dizemos de nós. E por vezes até dizemos coisas piores que as que ele disse e nem sequer estamos a usar nenhuma metáfora, como ele fez. Às vezes, por exemplo, oiço pessoas dizerem as piores coisas de familiares. Chamam nomes à mãe, ao pai, aos irmãos... mas depois se houver alguma pessoa de fora que diga qualquer coisinha muito menos grave... é uma ofensa enorme e imperdoável. Gostamos de levar as coisas muito literalmente mas só quando nos convém”, explica, perante a concordância do seu companheiro de conversa, Hermínio Martinho.
O desencanto do advogado com certos comportamentos de alguns portugueses vai mais longe. “Ouvimos certas pessoas dizerem que gostam muito de quem é sincero mas se o seu interlocutor for sincero e lhes disser na cara aquilo que verdadeiramente pensa, ficam irritadas e nunca mais lhe falam. É uma hipocrisia. A sinceridade de que gostam é dizermos bem delas”.
Hermínio Martinho diz que tem tendência a não radicalizar a relação com o outro. A sua postura é conciliatória e acredita que esse é o caminho para a harmonia. “Os outros são connosco um pouco aquilo que nós somos com eles. Se tivermos uma predisposição natural para tratar as pessoas como gostamos de ser tratados podemos conseguir relações menos agressivas. Às vezes até um sorriso resolve muita coisa. Eu tenho seguido sempre a política de tratar os outros como gosto que me tratem a mim”, declara.
Santana-Maia Leonardo ouve com atenção mas retoma o discurso do desencanto. “Eu hoje estou muito descrente da natureza humana. O povo português, de uma forma geral, é um povo camaleão. O facto de termos vivido 400 anos com a Inquisição, 50 anos de ditadura e de termos sido um povo pequeno que conheceu o Mundo e teve que se adaptar ao que foi encontrando para sobreviver, fez-nos ganhar uma pele de camaleões. Se o português for para a Espanha é espanhol. Se for para França é francês. Se for para a Alemanha é alemão. É por isso que nesses países gostam dos portugueses. Mas o pior é em Portugal. Camaleões a viverem e a serem governados por camaleões não dá resultado”, ironiza.
Os dois participantes nas conversas da série Duetos estiveram durante muitos anos ligados à política activa mas dão a entender que ficaram vacinados. Hermínio Martinho, conhecido por ter sido o fundador do PRD (Partido Renovador Democrático) em 1985, foi vereador na Câmara de Santarém, eleito pelo PSD num mandato e pelo PS noutro.
Santana-Maia Leonardo concorreu sempre pelo PSD e foi vereador nas câmaras municipais de Ponte de Sôr e de Abrantes. Diz que actualmente até se sente constrangido por ter sido daquele partido mas atenua esse facto dizendo que o que o moveu não foi o desejo de poder mas o de participação cívica e de defesa da liberdade e da democracia.
“Em nenhuma das duas câmaras havia qualquer possibilidade de vencer. Se houvesse acho que não tinha sido candidato. Fui sempre da oposição e já sabia que iria ser assim quando aceitei ser candidato. Era para mim impensável ser candidato do PSD em locais onde o partido vence sempre, como na Madeira ou em Viseu”, defende.
O advogado vê de vez em quando o programa de política “Quadratura do Círculo”, normalmente fora de horas. Hermínio Martinho diz que não liga muito à politica. Os dois confessam que nunca viram o Canal Parlamente e que a televisão lhes serve principalmente para verem alguns jogos de futebol, seja da Liga Inglesa ou do Barcelona no caso do advogado, seja do Benfica e da Selecção Nacional, no caso de Hermínio Martinho.
Já foram espectadores mais ou menos assíduos de cinema e aproveitavam as idas a Lisboa para ver alguns filmes mas o desaparecimento das salas que passavam filmes interessantes e a diminuição de qualidade dos filmes fê-los virarem-se para a música, nomeadamente a música clássica, que ouvem no carro quando viajam.
Trabalhar para limpar o lixo que outros despejam à nossa porta e é se não queremos ter lixo à porta
O engenheiro Hermínio Martinho dá semanalmente meia hora de trabalho voluntário a uma causa perdida e já convenceu alguns vizinhos a fazerem o mesmo. Ele elogia a força do exemplo mas a força do exemplo não resolveu o problema que o faz sair à rua nas manhãs de domingo.
“A minha quinta em Santarém confina com a estrada que vai das Fontainhas a Perofiho. Uma das coisas que me incomoda é ver a falta de civismo dos condutores que por ali passam e que atiram tudo e mais alguma coisa pelas janelas das viaturas. Para evitar aquele espectáculo do lixo espalhado por todo o lado eu gasto, todos os domingos de manhã antes de almoço, entre vinte a trinta minutos a apanhar aquilo”, explica.
E acrescenta: “Levo um saco de plástico dos grandes e encho-o por completo. Apanho papéis, garrafas, maços de tabaco vazios, caixas de medicamentos vazias, embalagens vazias de chocolates e de outros alimentos. De início as pessoas metiam-se comigo. Agora já vou vendo vizinhos meus a fazerem o mesmo. A apanharem o lixo em frente àquilo que é deles”.
Hermínio Martinho conta a história para exaltar a força do exemplo e Santana-Maia Leonardo também explica que quando era professor entrava à frente dos alunos para apanhar os papéis que tinham ficado no chão após a última aula, tendo reparado que ao fim de algum tempo eram os alunos a apanhá-los. Mas se no caso do ex-professor o exemplo contagiou quem fazia lixo, isso não acontece no caso relatado por Hermínio Martinho. Afinal, os automobilistas e os passageiros continuam a atirar lixo para a estrada.
Como o que não se queria fazer e se foi fazer a contragosto acabou por ser das coisas mais importantes da vida
O avô materno de Santana-Maia Leonardo não tinha o neto em muito boa conta por causa das noitadas dele e da sua rebeldia. Por isso, quando soube que ele tinha sido chamado para cumprir o serviço militar obrigatório ficou muito preocupado e até confessou que receava que ele acabasse no Presídio Militar.
“Fui chamado para fazer o serviço militar em 1983, depois de meses antes me terem comunicado que tinha passado à reserva”, conta o advogado, que acrescenta: “Vim a saber que fui chamado porque tinha havido muitos que se tinham declarado objectores de consciência, que era uma desculpa muito utilizada na altura por quem não queria fazer a tropa”.
Apesar de aconselhado a declarar-se também objector de consciência e dos receios do avô sobre a sua natural propensão à indisciplina, Santana-Maia Leonardo acabou por se apresentar.
“Tinha dois filhos pequenos, um com dois anos e outro com um e estava a fazer o estágio para professor. Fui a contragosto mas agora posso dizer que o serviço militar foi das coisas mais importantes da minha vida porque fez de mim uma pessoa melhor”, declara.
Foi o primeiro classificado no Curso de Oficiais em Mafra e depois foi colocado em Santa Margarida. A partir dessa altura o avô começou a olhar para ele como um homem.
“Aquilo que sou hoje devo-o ao serviço militar. Aprendi muita coisa como o espírito de missão, por exemplo. Se tenho uma coisa importante para fazer sacrifico tudo para conseguir. A tropa deu-me também resistência psicológica e aprendi o valor da solidariedade e do exemplo. Tenho procurado na minha vida, seja onde for, dar o exemplo. Fui presidente de um clube e nunca entrei no estádio sem pagar bilhete. Nunca usei uma carrinha do clube para tratar de assuntos pessoais. Nunca fui a um jantar do clube sem pagar”, explica.