O habitante de Azinhaga que tinha a cama dos avós de Saramago e nunca leu um livro do prémio Nobel
Cama acolhia os leitões no Inverno e foi onde acabou os dias a tia do último proprietário. Não é uma cama qualquer. A sua estória cruza-se com a do único escritor português a alcançar o Nobel da Literatura.
Era num pequeno quarto caiado de tecto baixo de madeira com muitas camadas de tinta bege que estava a cama onde os avós de José Saramago chegaram a deitar o neto e os bácoros no Inverno. Jorge Craveiro Duarte abre a porta do quarto onde se destaca uma cama de ferro branca qua ocupa quase todo o espaço, decorado com móveis mais antigos que o dono da casa, que já leva 61 anos de vida. A lustrosa cama foi comprada pela Junta de Freguesia de Azinhaga para substituir a que era dos avós do prémio Nobel e onde terminou os seus dias, acamada, a tia de Jorge, que diz ser parente afastado de Saramago.
Quem no pólo da Fundação José Saramago, na Azinhaga, terra natal do escritor, na antiga escola primária, a poucos metros da casa de Jorge, olha para a recriação do quarto dos tempos de criança do escritor, não imagina que aquela cama tem a sua própria estória. Embora pareça passar despercebida ela está imortalizada no livro Discursos de Estocolmo, que reúne os discursos proferidos por José Saramago por ocasião da entrega do Nobel da Literatura.
Na academia sueca, aquando da entrega do prémio, em Dezembro de 1998, o escritor recordou as suas origens e começou por falar da pessoa com quem mais aprendeu, que era o analfabeto do seu avô. A inscrição que sobressai ao lado da cama é uma parte desse discurso que releva o papel daquela robusta cama de ferro que recuperou as garridas cores originais: “No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama”.
A cama era um dos elementos mais importantes da vida dos avós de Saramago, que muitas vezes os ajudou nas tarefas de pastorícia e de cultivo da terra, porque dela dependia a sobrevivência dos pequenos porcos e por conseguinte a sobrevivência económica de Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha. “O que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável”, escreveu e disse perante a academia o único português Nobel da Literatura. Jorge Craveiro Duarte, que deixou Lisboa, onde esteve na Casa Pia, para cuidar da tia doente na Azinhaga, que lhe deixou a casa e a famosa cama, não leu o discurso nem qualquer outro livro de Saramago. Isso pouco o afecta, gosta mais de outras leituras e está a acabar de devorar umas tantas páginas sobre a Segunda Guerra.
Não há dúvidas que a cama exposta na fundação é a que pertenceu aos avós do Nobel. Este reconheceu-a logo que foi levado à casa que a albergava, de 1939, contruída 17 anos após o nascimento do escritor. Conta o presidente da junta, Vítor Guia, o grande responsável pela reaproximação do escritor à sua terra, que Saramago assim que olhou para a cama confirmou logo a sua origem, apesar das várias camadas de tinta que já tinham tapado as cores originais. Foi o próprio escritor que deu as indicações acerca das cores dos ferros e das flores de metal que decoram a cabeceira e os pés da cama.
Jorge, que andou por Lisboa a trabalhar como ajudante de cozinha e agora é coveiro no cemitério da Golegã, conta que a tia sempre lhe disse que a cama onde ela estava deitada era dos avós do escritor. “Era uma cama bonita”, admite. Terá sido por isso mas sobretudo pelo valor sentimental e, ainda mais, patrimonial, que o seu antigo guardião, homem de parcos recursos, percebeu que podia ser compensado pelo tempo em que estimou aquela armação de ferro. Vendeu a cama à junta de freguesia por mil euros e a autarquia teve também de comprar uma outra cama para pôr no lugar da dos avós de Saramago. Foi um bom negócio para os dois lados, embora por razões diferentes.