As obras estão mais humanizadas mas ainda se falha muito na segurança
O MIRANTE numa fiscalização da Autoridade para as Condições do Trabalho não encontrou uma única obra em condições
Há duas coisas que saltam à vista nas obras de construção civil. A boa é que já não se encontram as habituais garrafas de cerveja vazias de antigamente. A má é que ainda se descura muito a segurança. Um dia e uma tarde com os inspectores da Autoridade para as Condições do Trabalho, do Centro Local da Lezíria e Médio Tejo, mostram que ainda há muito trabalho a fazer de sensibilização de empreiteiros e trabalhadores. A começar pelo uso dos capacetes, regra que devia estar na cabeça e que nenhum dos que encontrámos lhe dava uso.
A imagem das obras já não é a mesma. Não se encontram garrafas de cerveja mas ainda há muita coisa que não está bem na construção civil. A segurança nem sempre é uma prioridade e os inspectores da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) têm andado a visitar obras no âmbito da Campanha Ibérica de Acidentes de Trabalho. O cenário que encontraram, numa dessas acções, acompanhada por O MIRANTE, ainda deixa muito desejar. A preocupação do Centro Local da Lezíria e Médio Tejo é tirar o distrito de Santarém da posição negra do terceiro lugar nacional em número de acidentes de trabalho.
Dias antes de O MIRANTE ir com os inspectores para o terreno, um pintor ficou em estado grave ao cair de um andaime após ter sido electrocutado, quando pintava um posto de transformação de electricidade em Muge, Salvaterra de Magos. Os inspectores não se cansam de sensibilizar mas mesmo assim é difícil mudar hábitos, o que é reconhecido por alguns trabalhadores, como Carlos Santana, da Tapada, Almeirim, que já teve oito acidentes de trabalho (ver caixa).
Na segunda-feira, 22 de Maio, os inspectores Ana Cardoso e Bernardo Marcelino saem da delegação da ACT de Santarém com um plano de trabalhos já definido. Primeira paragem é no Vale de Santarém, onde vão verificar as condições de trabalho na construção de uma vivenda, após o empreiteiro ter comunicado a abertura de estaleiro. A obra vai adiantada e ainda não houve qualquer acidente. Terá sido sorte atendendo à falta de segurança. Sorte ou intervenção divina de Nossa Senhora, que tem “protegido” o pedreiro da Tapada.
O carro da ACT, descaracterizado, estaciona a uns metros da obra. Os inspectores calçam as botas de protecção, colocam os capacetes na cabeça, preparam o cartão para se identificarem e avançam. Bernardo entra na obra e Ana fica de fora a ver as movimentações. Se alguém fugir é porque está a trabalhar ilegalmente. O primeiro sinal de que a segurança não é uma prioridade são os andaimes em frente à fachada, sem guarda corpos que evitem quedas. Ana Cardoso chama a atenção para o facto e os trabalhadores começam a desmontar as estruturas metálicas. Dentro da obra não há também protecções nas varandas nem nas escadas. Uma queda de dois metros de altura se não for mortal pode deixar o trabalhador numa cadeira de rodas.
Os pedreiros e os estucadores que estão a trabalhar no local estão calmos e compreendem os “puxões de orelhas” dos inspectores, ao ponto de começarem a colocar as guardas de protecção de imediato. No exterior está a ser feita uma piscina. O buraco aberto sem que esteja vedado é um perigo, sobretudo para alguma criança que entre no espaço. Um trabalhador que está no serviço de estucagem não tem papéis. “É o primeiro dia, veio experimentar se gosta”, diz o colega. A empresa é notificada para apresentar a inscrição do trabalhador na Segurança Social nesse mesmo dia. É também exigida a apresentação na ACT da documentação que devia estar na obra. Quem não apresentar os documentos solicitados incorre num crime de desobediência.
Além da segurança, papéis é também o que mais falta na obra do Vale de Santarém. Não há o aviso de abertura de estaleiro, livro de obra, identificação do coordenador de segurança, Plano de Segurança e Saúde. Os inspectores notificam as empresas de construção e de estucagem, para medidas de prevenção a executar de imediato. Quando Ana e Bernardo acabam de escrever cinco folhas de notificação, com as irregularidades detectadas e as medidas a tomar, já a obra parece outra. Os trabalhadores já tinham regularizado grande parte das situações. “Assim dá gosto”, remata Ana Cardoso à saída.
Uma vivenda moderna com insegurança à antiga
Quarta-feira, 24 de Maio, 14h30. Maria dos Anjos, a inspectora há mais anos na ACT em Santarém, e João Caneira, vão verificar se um empreiteiro cumpriu as indicações que lhe foram dadas no dia anterior quando montava andaimes numa rua do centro histórico em Santarém. Os equipamentos não estavam homologados e não respeitavam as regras de segurança. Já não há andaimes no local e vai-se esperar pela montagem de uns que respeitem as normas. Esta é uma das acções que muitas vezes tem tanto efeito quanto a repressão pura e dura. Sem necessidade de intervenção rumamos a Almeirim.
Os andaimes parecem ser o problema em muitas das obras, como acontece na construção de uma vivenda moderna, com técnicas de construção inovadoras, em Almeirim. Os andaimes são os amarelinhos do século passado que já não deviam ser usados. Não têm guarda corpos e muitas das quedas acontecem nestas estruturas e são geralmente graves. Não estão trabalhadores em cima dos andaimes desta obra na zona do Centro Escolar dos Charcos, se estivessem os trabalhos seriam suspensos pelos inspectores da ACT.
No local uma empresa subcontratada está a montar caixilhos nas varandas, sem qualquer barreira de protecção que evite quedas. Os trabalhadores anuem que é perigoso. Dois lances de andaimes em esquina estão ligados por uma tábua periclitante, inclinada devido à diferença de altura entre as estruturas, a três metros do solo, que cai ao chão num estrondo quando Maria dos Anjos lhe toca com um pé. “Está a ver o perigo de um trabalhador passar em cima desta tábua e ela escorregar?”, observa a inspectora.
Mas nesta obra não há só o perigo de queda, também há o de electrocussão, num gerador com fios descarnados e sem ligação à terra. Para evitar acidentes, todos os equipamentos eléctricos, como betoneiras, têm de ter ligação à terra, que pode ser através de uma vara própria enterrada no chão (nas mais antigas). Maria dos Anjos e João Caneira identificam todos os trabalhadores em obra, condição imprescindível, para se controlar se há mão-de-obra ilegal. Os inspectores vão chamando a atenção para as irregularidades, mandam os trabalhadores começarem a melhorar as condições, o que começam a fazer educadamente, enquanto escrevem as notificações. “Olhe que amanhã passo cá para ver se está tudo bem”, avisa Maria dos Anjos quando se despede.
O rei dos acidentes que diz ser salvo pela Nossa Senhora de Fátima
Carlos Santana deve ser dos pedreiros com mais acidentes de trabalho no país e tem tido a sorte, apesar de alguns casos graves, de ainda cá estar para contar as histórias. Encontrámo-lo a trabalhar na construção de uma vivenda em Vale de Santarém, quando os inspectores do trabalho fizeram uma fiscalização no local. Já no final, em jeito de despedida, o trabalhador confessou que já teve oito acidentes em obras e que tem a noção de que muitas das situações são os próprios trabalhadores que as provocam.
O trabalhador, de Tapada, concelho de Almeirim, anda na construção civil desde a adolescência e para se estrear, logo aos 16 anos de idade, caiu de uma viga de 10 metros de altura. Não desistiu nem dessa vez nem das outras sete vezes que teve acidentes em obras. “Tenho sete vidas como os gatos”, diz em jeito de brincadeira reconhecendo que os trabalhadores facilitam para fazerem as coisas mais rápidas e descuram a sua própria segurança.
Os acidentes mais graves foram o primeiro e o mais recente. Da primeira vez fracturou duas vértebras da coluna. Esteve um ano e meio hospitalizado. No último, que diz ter sido um descuido, tropeçou na plataforma do andaime, que até tinha sistemas de segurança, e acabou por cair. “Fui eu que facilitei o acidente”, reconhece. Sobreviveu depois de curar dois pulsos partidos e uma perna, além de traumatismo na face. Depois de seis meses numa cadeira de rodas voltou à construção. “E graças a Deus ainda cá estou”.
Carlos, 52 anos de vida e mazelas, parece ter mais fé nas forças divinas que na segurança. “A minha vida é esta”, conforma-se o pedreiro que se resigna aos riscos. “Ando no perigo, mesmo com segurança”. O pedreiro não perdeu o medo das alturas. “Subo como tenho de subir. Faço o impossível”. O homem das sete vidas tem consciência que os trapezismos sobre andaimes às vezes correm mal, como daquela vez em que caiu quase para a morte. “Mas tive algo que me agarrou. Seja o que Deus quiser”, conclui o trabalhador que diz ter uma senhora que é a sua “grande amiga e protectora”, a mesma apareceu aos pastorinhos. Esta divindade parece meter as mãos para aliviar as quedas de Carlos, que espera que ela nunca adormeça quando ele precisar.
Atenção especial aos trabalhos em instalações com amianto
A ACT tem uma especial atenção a trabalhos que envolvam telhas ou condutas de fibrocimento. Na acção de prevenção de acidentes, os inspectores Ana Cardoso e Bernardo Marcelino, fiscalizaram uma operação de retirada de tubagens na estação de tratamento de águas de Vale da Pedra. O subempreiteiro contratado para o trabalho teve que submeter, como acontece em todos estes casos, um plano de trabalhos para aprovação da autoridade. Nestes trabalhos é imprescindível cumprir uma série de regras para protecção dos trabalhadores e de terceiros.
O que os inspectores verificaram no local foi que os trabalhos não estavam a ser feitos conforme definido no plano. Um operador de uma máquina estava a trabalhar sem o fato de protecção obrigatório. Alguns tubos já retirados deviam estar encapsulados e não estavam. O engenheiro responsável, aprovado pela ACT, não estava no local, nem o funcionário responsável pelo socorro e emergência. A decisão do dono da obra foi suspender os trabalhos de imediato, até que a situação se resolvesse.
Ao fim de cerca de três horas a verificar papeis, a fazer perguntas, a identificar os funcionários e a sua formação para este tipo de trabalho, várias conversas com o engenheiro da empresa, ficou decidido encontrarem-se todos no dia seguinte às 9h00 para se ver se os trabalhos podiam continuar em segurança. E tudo se resolveu, com a rectificação dos procedimentos, evitando-se atrasos na obra. As operações em materiais com amianto são perigosas para a saúde, porque há libertação de partículas que podem ser inaladas, o que constitui um perigo.
Pedras a cair, asneirada e empresa que era um baldio
Maria dos Anjos, há duas décadas a fiscalizar as condições de trabalho, já passou por experiências, que hoje já não acontecem porque o velho ambiente da construção civil está mais “polido”. Há uns anos a inspectora estava numa obra e de repente alguém do primeiro andar começou a empurrar pedras para o chão, na sua direcção. “Foi uma clara tentativa de intimidação”, desabafa. As pedras caiam-lhe ao lado e Maria dos Anjos manteve sempre a sua postura e lá fez o seu trabalho mantendo-se firme e mostrando não ter medo.
Muitas vezes acontecia para que desistisse de fazer a fiscalização, ser brindada à entrada da obra com linguagem obscena, numa atitude intimidatória. O pessoal das obras assim que detectava a presença dos inspectores desatava a dizer asneiras das mais pesadas, sobretudo quando a inspectora estava acompanhada por outra colega. “Nessa altura não podemos ligar. Sabemos qual é a intenção e só temos que fazer o nosso trabalho sem deixar que isso nos perturbe”, explica.
A Ana Cardoso também lhe aconteceu um episódio, mas este com mais piada. “Fomos fazer uma fiscalização no sector agrícola e tínhamos a morada de uma empresa que pretendíamos fiscalizar. Foi enviado um ofício para que o representante da firma estivesse presente na altura da inspecção. No dia marcado deslocámo-nos ao local, onde supostamente se trabalhava, e quando chegámos o que encontrámos foi somente um terreno baldio com um poste de electricidade e uma caixa de correio”, conta.
Estatísticas de 2016
- 13 acidentes mortais no distrito de Santarém;
- 25 acidentes graves no distrito de Santarém;
- 43 acidentes mortais na construção no país;
- 84 acidentes graves na construção no país;
- Segunda-feira, dia em que ocorrem mais acidentes