Depois de vinte anos a pegar toiros ‘Peitaça’ sai das arenas
Forcado de Coruche despede-se no sábado, numa corrida de toiros em sua homenagem na praça de Coruche. Rui Godinho também foi bombeiro e jogou futebol mas a paixão pela festa brava falou sempre mais alto.
Imagine entrar num espaço onde o espera um animal a rondar os 600 quilos e que já colocou inconsciente um dos colegas. Foi assim que se sentiu mais do que uma vez um dos mais antigos forcados do país que nos recebeu a poucos dias de ser homenageado e deixar as arenas, a 24 de Setembro na Praça de Toiros de Coruche.
Rui Godinho, 42 anos, conhecido carinhosamente por ‘Peitaça’ no Grupo de Forcados Amadores de Coruche, pega toiros há 20 anos e nem o facto de ter ficado sem o dedo mindinho do pé o fez parar. Uma paixão que já vem no sangue, não fosse o seu avô materno campino na antiga ganadaria Henriques da Silva, no Couço, concelho de Coruche.
“Já em pequeno pedia ao meu avô para me acordar para depois irmos os dois no cavalo para o maneio do gado. Eu gostava tanto disto que quando dava touradas não havia ninguém que me tirasse de frente da televisão e até mesmo no recreio da escola costumava brincar com os meus amigos a imitar as pegas. Os meus amigos eram o toiro e eu era quase sempre o forcado de cara”, conta.
Em jovem ainda foi jogador de futebol nas equipas do Couço, nos Foros dos Lagoiços, no Águias do Sorraia e no Santajustense e bombeiro durante cinco anos, mas quis o destino que o bichinho pelas pegas falasse mais alto. “Entrei nos Bombeiros Voluntários de Coruche com 17 anos. Foi o meu primeiro trabalho. Na altura decidi alistar-me porque sempre gostei de fardas. Foi daí que surgiu a minha alcunha porque eu sou pequeno e costumava estar na formatura para bombeiro com o peito sempre para fora e os meus colegas bombeiros começaram a chamar-me assim”, explica.
Diz que foi através do seu amigo António José Henriques da Silva que, nessa altura, já com 23 anos, entrou no grupo de forcados e nunca mais deixou. “Na altura, dava ao meu chefe a lista com as corridas que o grupo ia participar e ele nessas alturas não me punha de serviço”, explica.
Prova superada
Rui Godinho ainda se lembra do seu primeiro treino nos forcados como se fosse hoje. “Estava em casa e apareceu-me lá o cabo dos forcados a chamar-me para fazer parte do grupo no treino que iria ser no Biscainho. Entretanto, vínhamos pelo caminho e ele disse-me: ‘Agora chegas lá e vais deixar-me mal visto. Vais para lá cheio de medo’. E eu respondi-lhe: ‘Deixa estar que não vou deixar ficar o grupo mal visto’. No final, correu tudo bem, eu gostei daquilo e continuei”, adianta, revelando que o que lhe metia mais medo não era o toiro, era o público. “Eles é que são o nosso júri e sempre me preocupei que eles gostassem do que eu fazia”, explica.
E porque um toiro é sempre uma carta fechada, histórias é o que não falta a ‘Peitaça’ ao longo destes anos. Uma vez, conta, “quando ia fazer uma pega na antiga praça de Évora, o toiro bate-me com a testa no queixo e fiquei inconsciente”. Foi numa sexta-feira à noite e só acordou no domingo de manhã. “Nesse dia lembro-me que tinha lavado o barrete pela primeira vez e jurei até hoje nunca mais o lavar”.
E como será que se prepara para as corridas? O forcado natural do Couço confessa que faz tal e qual como um jogador de futebol. Logo no dia anterior tem o cuidado de não beber e não ficar acordado até tarde. “Normalmente janto, vou tomar o meu café e pelas dez da noite vou-me deitar. Depois, no outro dia de manhã, acordo cedo, meto-me no quarto ou na sala, oiço um paso doble e só aí começo com as minhas superstições. Começo por preparar o meu altarzinho onde meto a minha jaqueta e o meu barrete e peço à Nossa Senhora do Castelo que me acompanhe e também ao meu grupo. Mais tarde, quando vou colocar a minha farda no saco, realizo as minhas orações com o barrete e a jaqueta e no local onde nos fardamos repito as mesmas práticas”, conta.
Prestes a deixar as arenas, ‘Peitaça’ admite que já lhe está a custar. “Vou sentir muita falta da vibração do público na hora da pega, mas sobretudo, de acompanhar o meu grupo. Eles são muito especiais para mim. São a minha segunda família. O local onde cresci e aprendi a ter educação e nunca me vou esquecer”, conclui.
Couço ao abandono
Nascido e criado no Couço, Rui Godinho considera que a aldeia está melhor do que quando era jovem, mas há áreas que ainda deixam muito a desejar, nomeadamente a nível da saúde e da segurança. “O Couço é uma terra que parece que está ao abandono. Para além de ter pouca população e de ser muito idosa, há poucas ofertas de emprego e carências em muitos serviços, como na extensão do centro de saúde que só trabalha até às quatro da tarde ou o posto da GNR que está aberto só com um efectivo”, afirma.
“Nós tivemos muita sorte este ano em não termos sido assolados por nenhum incêndio. Foi quase um milagre”, diz, referindo que se deveria aprender com os erros dos outros e apostar mais na limpeza dos canaviais e reforçar os meios existentes, “sob pena de amanhã sermos nós a passar por essa desgraça”.
Filho segue pisadas
Há quem diga que filho de peixe sabe nadar. É o caso do filho de Rui Godinho, com 16 anos, que o pai faz questão de fardar desde o primeiro ano de idade em todas as corridas de toiros que decorriam em Coruche. “Eu falava com o cabo e depois fardava-o”, refere, dizendo que o grupo até chegou a oferecer um forcado (utensílio agrário com haste de pau terminada em duas pontas agudas) e uma jaqueta que ainda hoje guarda religiosamente. “Ele sempre preferiu o futebol à tauromaquia mas houve um dia que ele veio ter comigo e perguntou-me: ‘quando é que há o próximo treino?’ Entretanto, apanhámos este treino ligado à festa campera em Montinho dos Pegos e ele gostou. Agora só espero que ele continue e que siga as pisadas do pai”, adianta.
Quando ele pega a mulher fecha os olhos
Toiros foi o que não faltou na vida de Rui Godinho. E namoradas? O forcado conta que teve a sua primeira namorada com 17 anos. “Ela nunca soube que eu gostava de toiros. Na altura, acompanhava-me no futebol e na pesca, já que também fazia parte da secção de pesca da União Desportiva do Sorraia”, conta. Mas não foi a única. Entretanto, foi quando entrou no grupo de forcados que conheceu a esposa. “Foi através de dois forcados que a conheci”, revela. E adianta: “Ela sempre me acompanhou nas corridas e dá-me muito apoio. Quando sou eu a pegar o toiro ela fecha os olhos e nunca vê”.
Recorde das pegas
Pegar toiros não é para todos, mas pegar três toiros em 24 horas é só para quem sabe. Foi o que fez ‘Peitaça’ aos 25 anos. A primeira pega foi na sexta-feira à noite, nas festas da Ascensão, na Chamusca; no sábado à tarde no Algarve e no sábado à noite na alternativa de Alberto Conde, em Coruche. Uma proeza que Rui Godinho confirma: “Foi logo à primeira”.