Duas vendedoras com quarenta anos de diferença que quase nasceram no mercado de Vila Franca de Xira
Cecília Camilo reparte o tempo entre a venda de fruta e a escrever livros e Catarina Pinto dá juventude ao espaço
A vendedora mais antiga do mercado de Vila Franca de Xira, Cecília Cristóvão Camilo, começou a infância atrás da banca e a mais nova, Catarina Pinto, já ia para o mercado na barriga da mãe, uma das vendedoras do espaço inaugurado em 1929. Cecília conhece o mercado como as próprias mãos, fazendo 66 anos de actividade, durante os quais assistiu a brigas e suicídios de colegas.
Cecília, que começou a trabalhar no mercado aos 10 anos de idade, conta que viu várias vezes algumas colegas andarem “à pancada” em disputas para ficarem com clientes. Mas um dos episódios que mais a marcou foi quando o dono de um espaço de mercearia suicidou-se por não conseguir perceber como é que funcionava o Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA). Cecília, que gosta de escrever e quer passar a banca a alguém para se dedicar a essa paixão, é do tempo em que as bancas eram em madeira e não havia facturas, muito menos máquinas registadoras. Recusa-se a usar estas máquinas mas passa recibos à mão, dizendo com orgulho que tem “sempre tudo em dia quando passa a fiscalização.
A vendedora mais antiga, conhecida por Cilinha, começou por vender os enchidos dos tios, antes de se estabelecer na venda de frutas e hortícolas. Quando concluiu a instrução primária (primeiro ciclo) deixou a casa dos pais para ir viver com os tios, que eram donos de um talho dentro do mercado e onde vendiam a carne dos porcos que criavam. “A minha tia achou que eu tinha jeito e então fui ficando por aqui”, conta a O MIRANTE.
De segunda a sábado a rotina é sempre a mesma, faça chuva, sol, frio ou calor. O despertador toca às cinco da manhã, para estar no mercado às seis e estar no seu posto às 7h00, quando o mercado abre as portas. Nos tempos mortos durante o dia, “alguns infelizmente”, ocupa-os a ler e a escrever. Na mala preta que a acompanha todos os dias leva o essencial: Um livro de José Rodrigues dos Santos, o autor preferido, canetas e as obras literárias que escreveu ou está a escrever.
Cecília Camilo é também Cilinha Calçada, como autora de dois livros, um em prosa e outro em verso, sobre a cidade de Vila Franca de Xira. O próximo projecto é um livro de memórias pessoais, escrito à mão, que serve para ficar como “uma homenagem ao mercado e à cidade”. “É uma coisa simples, de alguém que só tem a quarta classe, mas acho que vai ser muito bonito”, diz.
O livro ainda só tem algumas folhas escritas porque, com a dedicação à banca, o tempo que sobra para escrever não é muito. Com 76 anos, Cecília Camilo está a tentar arranjar alguém que lhe fique com a banca para utilizar o tempo que resta e dedicar-se ao sonho da escrita. “Não está fácil, os jovens de hoje em dia só querem um emprego seguro e sem muitas responsabilidades”, desabafa.
Catarina Pinto, a vendedora mais nova do mercado de Vila Franca de Xira, com 32 anos, está a contrariar a ideia de que os novos não querem este tipo de vida. Cresceu dentro da banca de produtos hortícolas que a avó começou em 1961. Estudou até ao 12º ano, na área da economia, e foi ajudando a mãe na banca ao fim-de-semana. Tinha o sonho de trabalhar num banco porque gostava muito de dinheiro e números, mas a experiência no emprego não correu da melhor forma e o apelo do mercado falou mais alto. “É o meu mundo e gosto mesmo disto. Temos de fazer o que gostamos, só assim faz sentido”, explica.
Acabou a ajudar no negócio de família e actualmente tem uma banca própria onde vende o pão e outros produtos tradicionais portugueses. Lamenta que outros jovens não abracem esta actividade e teme que com o desaparecimento dos vendedores mais velhos o mercado vá também morrendo aos poucos. Com uma filha a caminho, Catarina espera incutir-lhe o gosto pelo mercado para que ela um dia também venha a ajudá-la na venda, seguindo as suas pisadas e mantendo uma tradição familiar.