“O padre que me casou chegou atrasado mas fez-me um desconto de cem escudos”
Eduardo Jorge Abreu, 68 anos, bombeiro do Quadro de Honra, Vila Franca de Xira
Eduardo nasceu em Vila Franca de Xira e começou a trabalhar aos 11 anos. Enfermeiro durante o serviço militar, a sua paixão pelos bombeiros levou-o a vestir o uniforme durante praticamente toda a vida. Foi dos primeiros bombeiros a chegar às Quintas, na Castanheira do Ribatejo, durante as cheias que há 50 anos ceifaram centenas de vidas. O que lá viu não consegue esquecer. Hoje ocupa o tempo na sua tertúlia, “O Bombeiro Aficionado”, que é já uma das casas de referência da cultura taurina vilafranquense.
Fui dos primeiros bombeiros a chegar às Quintas em 1967 na altura das enxurradas e o silêncio e a escuridão marcaram-me até hoje. Era quase uma da manhã e ao avançar para uma casa pisei algo mole e tive um pressentimento muito mau. Dentro dessa casa estava uma mãe e três crianças mortas. Fiquei muito transtornado com aquilo.
Quando lá chegámos já estava tudo morto. A enxurrada levou tudo de repente. Limitámo - nos a fazer o melhor que podíamos com o que tínhamos. Em alguns casos estávamos nós a tirar os corpos e já andava gente a saquear o que havia no interior.
Lembro - me de um corpo que estava no meio da lama com o cão ao pé. Foi difícil levar o corpo porque o cão não deixava. Andámos a acartar os corpos com lama alta, com uma escada de mão a servir de maca. Foi uma tarefa muito difícil.
A minha mãe foi também a minha parteira. Eram outros tempos. Tenho boas memórias da minha infância em Vila Franca de Xira, terra onde nasci e sempre vivi. Trabalho desde os 11 anos e comecei com um empreiteiro a ajudar os pedreiros. Fiz o serviço militar como enfermeiro, estive no ultramar a fazer apoio à população.
Quando andei na tropa estive dois dias preso por me ter atrasado a chegar ao quartel. Estava no regimento de infantaria 1 e não me lembrei do dia em que devia regressar. Atrasei-me um dia e fui logo preso. Passei dois dias na cadeia mas foi bom porque ganhei bons amigos desse tempo, malta que faltava à tropa. Um deles acabou por embarcar no mesmo batalhão que eu. Quando voltei fiz um curso de massagista desportivo e ainda passei por alguns clubes do concelho.
O padre que me casou atrasou-se para a cerimónia. Quando lá chegou pediu desculpa e disse que me ia fazer um desconto de cem escudos por causa disso. Tanto eu como a minha esposa somos pessoas humildes. Estamos casados há 43 anos.
Com os filhos casados e já com netos só me faltava a tertúlia. Adaptámos uma casa de habitação para isto. Foi uma coisa que me deu muita alegria. Sentimo-nos felizes aqui e há sempre algo para fazer. Quando trazemos um amigo que nos elogia o espaço isso é uma bela recompensa. A tertúlia chama-se Bombeiro Aficionado porque tem um espólio considerável, não apenas de tauromaquia mas também da minha história dos bombeiros.
Quando era puto o meu ídolo era o matador José Júlio e cheguei muita vez a entrar na praça agarrado às calças dele. Coleccionava todos os programas e fotos e foi com esse espólio, e outro entretanto oferecido, que fomos concretizando a tertúlia.
Quem nos quiser visitar só tem de tocar à campainha. Estamos na rua Doutor Miguel Bombarda nº 243. A tradição tauromáquica tem futuro se a malta lutar. Não se pode acabar com uma tradição que ainda vem do tempo dos reis. O concelho está a saber aproveitar e promover a tauromaquia. Quando é a altura das festas as pessoas sentem que chega um dia espectacular.
Acho mal Alverca não ter garraiadas nas festas da cidade. Não é uma surpresa porque tem muita gente de fora mas quebra-se uma tradição. Deviam continuar a fazê-las porque só vai quem quer. Temos de respeitar os outros mas os outros devem respeitar-nos a nós.