Histórias da toxicodependência contadas na primeira pessoa
Pessoas que viveram durante muitos anos na dependência das chamadas drogas duras relatam o calvário que passaram quando estiveram agarradas ao vício que ia arruinando as suas vidas. “Achamos que somos os maiores e não damos conta de que somos a escória da sociedade”, diz Anabela Andrade, ex-toxicodependente.
Daniel Andrade e Anabela Andrade são dois rostos que passaram pela dependência do consumo de drogas. Estão limpos há 20 anos, são marido e mulher e dedicam a sua vida a tratar toxicodependentes, sem recurso a opiáceos e morfínicos [metadona e buprenorfina], ajudando-os a reinserirem-se na sociedade, através da REMAR.
Começou a fumar haxixe com 24 anos - “nem sequer foi muito cedo” - mas com as más companhias acabou por cair na “armadilha da droga”. Passados seis meses iniciou o consumo de drogas pesadas [heroína e cocaína], injectando-as, e já todas as substâncias lhe pareciam iguais. Perdeu o emprego, a mulher e os três filhos. Roubava para consumir e dormia na rua. Esta foi a fase negra da vida de Daniel Andrade, de 60 anos.
“Foi uma época terrível. Comecei a perder tudo, primeiro o emprego, depois a mulher e os filhos. O mais velho [na altura com 13 anos] tinha vergonha de mim e mudava de passeio cada vez que se cruzava comigo na rua. Roubei a minha mãe muitas vezes e o meu pai pôs-me fora de casa. Vivi numa casa com amigos da droga e depois passei a viver na rua. Nessa altura eu não queria saber de nada, a não ser de conseguir arranjar dinheiro para a droga”, conta Daniel.
Anabela Andrade, 50 anos, natural de Santarém, somou 20 anos de consumo e dependência: “Comecei a consumir haxixe com 12 anos e heroína e cocaína aos 17 anos”, conta a O MIRANTE, acrescentando que o consumo se intensificou depois de ter emigrado para Espanha e uma colega de trabalho (de um supermercado) lhe ter confessado que inalava substâncias. A curiosidade levou-a a fazer o mesmo. “Fiquei com uma sensação espectacular de que tudo era incrível. Na altura nem sabia que drogas eram aquelas, mas a sensação era tão boa que continuei. Um dia, quando me levantei para ir trabalhar, senti uma ressaca imensa, precisava de consumir. Foi tudo muito rápido, já estava agarrada”.
O penoso caminho para a cura
Daniel Andrade passou por várias tentativas de cura, mas as recaídas eram constantes. “Fiz uma cura do sono de três dias, mas quando acordei tanto a mente como o corpo pediam. O registo estava cá, a sensação de consumir não se esquece e voltei a consumir”. Foi quando decidiu curar-se sem recurso a medicações, na REMAR, que se viu livre das drogas.
“Não há outro tratamento mais eficaz senão ressacar a frio, porque sentimos na pele o caminho que levamos. Se for com comprimidos [controladores da dor e humor, como ansiolíticos e antidepressivos] não nos lembramos, ficamos um vegetal e somos anulados enquanto pessoas. Passei 20 dias sem dormir a ressacar, com dores terríveis. Foi muito difícil de suportar, mas não há outra forma de nos vermos livres da droga, senão esta”, conta.
Vira o rosto para o lado, de aspecto saudável, que não faz adivinhar os 20 anos de heroína e cocaína, em doses que diz terem sido surreais, mas certo de que seguiu o caminho correcto para a cura. “Os medicamentos que dão para substituir a droga também são droga e criam dependência. Dessa forma as pessoas nunca se vão ver livres dela”, diz Daniel. A opção de não recorrer a medicamentos de substituição dificultou-lhe o período de ressaca e não mente que foi difícil resistir e que falhou algumas vezes: “Estava muito agarrado e ainda voltei a fumar umas ganzas [haxixe], mas senti que estava a mexer outra vez com o diabo e parei”.
Também para Anabela cessar o consumo não foi um processo fácil, pois não admitia a dependência e a necessidade de ajuda. “Achamos que somos os maiores e não damos conta de que somos a escória da sociedade e que só não cospem em nós porque não calha”. Acabou por entrar na REMAR (em Espanha), em 2008, a pesar 38 quilos, com uma pneumonia grave. Tal como o seu marido, Daniel Andrade, fez a cura sem recurso a medicamentos, por opção e por acreditar que “os medicamentos são apenas uma droga que substitui outra, não ajudam verdadeiramente as pessoas a livrarem-se do vício, apenas lhe estão a dar outro”.
Comprar droga é fácil
Daniel Andrade adquiria as substâncias em toda a Lisboa, especialmente em bairros como a Buraca e Casal Ventoso. “Era muito fácil arranjar. Comprava uma quantidade e adulterava com outros pós para aumentar o volume e vendia a outros. Havia muita gente a fazer isso”. Mas a vontade de consumir aumentou de tal forma, que já não conseguia vender quantidades suficientes para manter o seu vício. “Não há um travão, é sempre para pior”, diz.
“Se as drogas fossem legalizadas o consumo diminuía”
Uma jovem de 25 anos passou praticamente metade da sua vida dependente de drogas. Agora está na primeira fase de tratamento no Centro de Acolhimento da REMAR, em Azambuja. Começou por fumar haxixe aos 14 anos, aos 22 fez a transição para o consumo de heroína e cocaína e aos 23 começou a injectar as substâncias. Fazia-o geralmente com o seu namorado, com quem acabou a viver na rua e a roubar.
“Começaram por ser os amigos a ir comprar a droga, mas depois comecei a ir sozinha, a bairros onde sabia que ia encontrar o que procurava”, explica a jovem que é da opinião que se as drogas fossem legalizadas o consumo diminuía. “As pessoas começam a consumir pela curiosidade, mas também pela clandestinidade, pois tudo o que for ilegal desperta interesse na população”, considera a jovem que pede para não ser identificada na reportagem.
Já esteve internada numa clínica para parar o consumo com a ajuda de medicação, mas “não resultou”. Agora já não consome há dois meses. Não houve medicamentos para aliviar as dores e não podia sair do centro de tratamento, mas desta vez “resultou porque vim por minha vontade”, diz a O MIRANTE.
Passa os seus dias no centro a ajudar nas tarefas diárias e a aprender a viver em comunidade com outras mulheres, algumas com histórias semelhantes à sua, onde a droga foi protagonista.