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Última Página: Um ano novo com uma pulseira verde

Crónica sobre os primeiros dias de 2019 e a sensação de viver uma nova experiência no sangue.

Passei o dia de ano novo com uma pulseira verde num serviço de atendimento permanente de um hospital privado. Saí de lá com uma nova experiência no sangue: uma dose de morfina que me transportou gradativamente para outro mundo; pela primeira vez soube o que era voar nas asas dos anjos azuis. Não sei ainda se o azar da doença vai valer pela experiência mas tenho fé que sim.

Nos últimos dias tive tempo para escrever uma crónica por hora, para ler os livros todos que não li nos últimos anos, para reescrever os textos esquecidos no disco do computador e nos cadernos perdidos lá de casa, mas limitei-me a usar o telemóvel, a ler alguns (poucos) jornais, a visitar uma livraria da avenida de Roma, a comer, a dormir e a caminhar para os médicos.

Entretanto constipei-me. Mal pude usar a mota em que gosto de me transportar. Troquei a ida regular ao cinema por uma série na televisão chamada House of Cards e garanto que foi a única ficção que me prendeu à realidade nos últimos oito dias.

Tive mais tempo para acompanhar o correio dos leitores de O MIRANTE e para perceber a dinâmica das mensagens no Facebook que chegam a solicitarem trabalhos editoriais, entre outros. Mas nada disso teve qualquer importância na minha vida. Desde o alvor do dia de ano novo que o trabalho deixou de ter qualquer prioridade no meu dia-a-dia. Recebi mensagens pessoais sobre cursos de dança, fotos misteriosas no meio do Tejo, e viagens pelo mundo, bem mais interessantes que todo o correio de trabalho diário que normalmente me entusiasma e faz andar a mil à hora de manhã à noite.

Tenho um bom amigo a passar por um período de doença complicada e pensei nele a toda a hora; e nunca me lembrei se o António Palmeiro, João Calhaz, Marco Rodrigues, Mário Cotovio, o Alberto Bastos ou a Joana estavam a precisar de ajuda, ou sequer se alguma vez voltam a precisar da minha ajuda para puxarem pela carroça.

Estar doente, mesmo que seja só com uma dor nas costas que apanha a cabra da perna, é pior que ser obrigado a comer todos os dias nos restaurantes de Santarém que carregam nos temperos; bem pior que trabalhar de sol a sol pressionado pelo tempo e o stress; muito pior que não ter descanso sequer ao fim-de-semana e passar a vida a trabalhar para os outros mesmo que já tenhamos idade e estatuto para não fazermos ponta de corno.

Nestes primeiros dias de ano novo não abri livros novos, excepto os que visitei na livraria, mas tive oportunidade de passar os olhos pelo Samarcanda, do Amin Maalouf, um livro que li em 2018 e que deixou marcas. Estive quase para o oferecer no dia 5 de Janeiro como prenda de anos, mas agarrei-me às páginas sublinhadas como se fossem uma prova da minha existência.

É o único acto egoísta de que me lembro e arrependo desde que o ano novo deitou as antenas de fora. É nesse livro que se diz que “as palavras, boas ou más, são como flechas: quando se disparam várias há sempre uma que atingirá o alvo”. JAE

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