Antigos craques da bola na Chamusca jogavam de pé descalço e por amor à camisola
O MIRANTE reuniu alguns dos antigos craques da bola na Chamusca na Semana da Ascensão. Uma oportunidade para recordar outros tempos, quando a Chamusca era viva, e o campo da bola era o lugar mais bem frequentado da Terra Branca.
O MIRANTE foi à Chamusca conversar com antigos jogadores da bola que noutros tempos enchiam de adeptos o campo de futebol situado na parte alta da vila.
A conversa estava marcada com oito jogadores desse tempo e só um deles faltou ao encontro. Quando a repórter de O MIRANTE
chegou ao bairro do Vimioso, lugar onde fica o campo da bola, já estava reunida meia equipa. A outra metade foi chegando já com a conversa a decorrer mas ninguém perdeu o fio à meada.
Todos os entrevistados reconhecem que são raras as vezes que frequentam o campo da bola. Estão todos reformados dos seus ofícios e do desporto. Alguns deles ainda fazem caminhadas e é esse o único desporto que praticam. Da conversa, que deu o mote para esta reportagem, ficaram de fora os temas relacionados com a vida política da terra e os considerandos sobre a economia do concelho. As perguntas foram feitas mas chegamos todos à conclusão que o importante era conversar sobre as tradições e os tempos em que com um pontapé na bola “acabava-se” com uma crise associativa e cultural.
Ninguém se vestiu a rigor para a reportagem, nem era essa a intenção, e também não levaram chuteiras para os toques na bola que captámos em vídeo no final da reportagem para O MIRANTE TV.
A conversa foi no bar do campo da bola mas embora o bar estivesse aberto ninguém quis molhar o bico durante as cerca de três horas de conversa. Nesse meio tempo só um sócio apareceu para beber um café e passou despercebido como se tivesse deixado em casa o arroz ao lume.
Este texto é uma homenagem aos jogadores da bola da Chamusca de outros tempos mas é também uma forma de homenagear todos os chamusqueses, de hoje e de ontem, que ainda mantém vivas as tradições da terra e vivem para dar testemunho.
“Na nossa altura não havia craques. Às vezes nem bolas havia, quanto mais craques”, começa por ironizar Bernardino Sequeira, jogador do Grupo Juventude Chamusquense, o primeiro grupo a ser criado com o objectivo de formar a primeira equipa de futebol da Chamusca. O ano de 1966, altura em que Ramiro Bairrão, Jorge Vital, João José Bento, Manuel Jorge Mira, Bernardino Sequeira, Manuel Jorge Maltês e António José Salvaterra, entre outros, começaram, literalmente, a bater às portas da população, para pedir apoios para mandarem fazer os equipamentos. “Não foi nada fácil. As pessoas não tinham dinheiro para essas coisas”, referiu à reportagem de O MIRANTE, João José Bento. “Nem todos tínhamos chuteiras, alguns chegaram a jogar com sapatilhas emprestadas e, quando não havia para todos, chegávamos a jogar descalços”, recorda Bernardino Sequeira. Foi o cantor José Cid, natural da Chamusca, que ofereceu as botas, recordam os ex-jogadores, numa conversa animada com a reportagem de O MIRANTE, no Campo de Futebol da Chamusca, outrora palco de muitos episódios revelados no bar do campo da bola. Aliás, como disse António José Salvaterra “não saíamos daqui hoje se pudéssemos contar todas as nossas histórias”.
O Campo de Futebol da Chamusca foi durante muitos anos de terra batida mas há muito tempo que recebeu relva sintética, o que facilita a pratica do desporto pelos mais jovens. No tempo desta equipa que O MIRANTE reuniu para recordar outros tempos não era bem assim: “os joelhos, os tornozelos e os cotovelos andavam sempre esfolados. E, além disso, a força usada para chegar à baliza adversária, muitas vezes era desmedida. “O Maltês era o pior. Quando começava a correr, mandava tudo ao ar. Às vezes, eu estava com dificuldades em subir no campo com a bola e começava a chamar por ele para me ajudar”, conta Manuel Jorge Mira, arrancando gargalhadas aos restantes.
As balizas eram feitas com dois paus que colocavam no início de cada jogo, retiravam e guardavam até ao jogo seguinte. Claro que nem sempre foi assim mas a intenção era voltar atrás no tempo para que a memória não se apague e sirva de exemplo.
O equipamento à maneira foi um luxo que veio mais tarde, conta Manuel Jorge Mira. “Lá conseguimos arranjar dinheiro para mandar fazer o nosso equipamento. Era azul e branco e foi confeccionado em Lisboa. Lembro-me perfeitamente que estivemos até à meia-noite à espera da carrinha que trazia os equipamentos. Vestimos logo para ver como nos ficava. Foi um dia que recordo com muita alegria”.
Nesta altura começaram a jogar mais a sério e a participar em campeonatos distritais e são unânimes ao recordar o nome de Armindo João Valério. “Foi ele o grande impulsionador para que este grupo fosse para a frente”. Na época de 1975/1976 sagram-se campeões distritais. Jogavam com vontade e com garra. Dizem que é o que os distingue dos jovens de hoje. Dizem que não eram vaidosos e que não passavam os 90 minutos a olhar para as namoradas que estavam nas bancadas. Aliás, elas acompanhavam os jogos, religiosamente, e ainda hoje são as mulheres com quem casaram e tiveram filhos. “E não trocava a minha por mais nenhuma”, atira Manuel Jorge Maltês. Não ganhavam um cêntimo. Ganhavam apenas prémios de jogo que depois em casa entregavam aos pais. “Hoje é o contrário. Só jogam se receberem, e ainda por cima são os pais que têm que os ajudar ao longo da vida”, referem.
Jorge Vital é apontado quase por unanimidade como o melhor jogador em campo dessa altura. Já no que toca a treinadores, que passaram pelo Grupo Juventude Chamusquense, Eurico Peixinho é o favorito.
Na nossa melhor época o grupo estava no auge, muitos clubes da região andaram atrás dos jogadores da Juventude. Mas a ida para a tropa, e para o ultramar, ceifou a vida também à Juventude Chamusquense. Quando regressaram, casaram, começaram a trabalhar e o tempo começou a ser escasso para se dedicarem de alma e corpo ao grupo. Alguns ainda voltaram a jogar, mas a idade também já pesava. Dedicaram-se a outras modalidades como o atletismo, no caso exemplar do Bernardino Sequeira, e outros passaram para o lado dos treinadores das camadas juniores e juvenis.
A equipa de seniores de futebol da Chamusca acabou quase ao mesmo tempo que esta geração arrumou as botas. Os craques da década de 70 e 80 olham com pena para esta perda e atribuem as culpas aos sinais dos tempos. “A Chamusca chegou a ter oito colectividades e todas tinham movimento. A vila chegou a ter seis mil habitantes e agora tem pouco mais de três mil. Os jovens agora vão estudar para fora e não voltam, porque não há trabalho para eles. Antigamente, noventa por cento da população não estudava, casava, constituía família, tinham tempo para o futebol, para jogar ao loto, ao ténis de mesa, ao bilhar, enfim, faziam das coletividades a sua segunda casa. Convivíamos muito mais. Agora é universidade sénior, a internet e as saídas à noite, e pouco mais. Vida associativa quase que não existe”, lembra Jorge Vital.
Em 1989 o Grupo Juventude Chamusquense foi um dos que serviu de base à formação da União Desportiva da Chamusca, a par do Sporting Clube Chamusquense (filial do Sporting Clube de Portugal) e do Sport Chamusca e Benfica (filial do Sport Lisboa e Benfica).
Ainda assim são unânimes na defesa da sua terra natal. Continuam a ter orgulho em serem chamusquenses. E, com a Semana da Ascensão à porta não deixam passar o tema. “É a melhor feira do Ribatejo. Não há igual”, sublinham. Reconhecem no entanto que deixaram de participar na vida associativa das poucas colectividades que ainda existem. Dizem que o associativismo está morto na Chamusca. Acompanham os netos em algumas actividades desportivas mas pouco mais se envolvem na vida em comunidade. “Demos o nosso contributo. Eram outros tempos e outras vontades”, remata Manuel Jorge Mira.
Ramiro Bairrão, talvez por ter nascido noutra freguesia, foi o menos interventivo, mas a repórter de O MIRANTE deixa aqui o registo de que foi também até há pouco tempo um dirigente associativo muito activo e com trabalho em prol da comunidade.