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Camionistas dizem que, para os patrões, são como a peça mais barata dos camiões
O MIRANTE falou com dois camionistas de Aveiras de Cima que não quiseram dar a cara para a reportagem

Camionistas dizem que, para os patrões, são como a peça mais barata dos camiões

“Somos uma espécie de escravos” dizem dois motoristas de Aveiras de Cima. O MIRANTE foi a Aveiras de Cima, onde fica o quartel-general dos motoristas, falar com dois deles.

Ao fim de catorze horas em serviço, o motorista João Cláudio senta-se no café restaurante Velharias, em Aveiras de Cima, à beira da Estrada Nacional 366. É ali que se costuma encontrar com o seu colega José (“basta José”), também motorista mas de matérias perigosas.
Está na terra onde nasceu e onde vive e que nos últimos tempos foi muito falada nas televisões, por ser ali que se realizaram as reuniões de motoristas durante a última greve mas diz à jornalista que não quer falar muito de greves. Vai falando sobre a vida e o trabalho e quando o colega chega faz o mesmo mas mais à frente não evitam o assunto.
João Cláudio tem 45 anos e não tem ninguém em casa desde que se divorciou. José, que entretanto chega, tem mais três anos e também está divorciado, apesar de ter uma namorada que não mora ali. O objectivo dos dois é terem uma vida menos dura e mais tempo para outras coisas além do trabalho.
José é natural de Alcoentre e motorista desde os 21 anos. Diz que quando fazia transporte internacional chegava a passar três semanas fora de casa. Mudou de empresa e está menos tempo fora mas as horas de trabalho, somadas às horas extraordinárias, continuam a ser mais que muitas.
“Não nos sobra tempo para nada. O cansaço é tanto e a paciência tão pouca que ao chegar a casa é tomar banho e adormecer”, conta o motorista de matérias perigosas. “Não faço desporto e é raro sair com os amigos. Normalmente estou demasiado cansado para isso”, reforça.
João Cláudio diz que recebe cerca de 1.400 euros, quantia que lhe dá para pagar as prestações do carro e da casa e para ir vivendo. “É dura esta vida. Actualmente nem uma namorada consigo arranjar. Já quando estava casado era o mesmo. Havia alturas em que só me cruzava com a mulher na cama e apenas quando fazia turnos durante o dia. Era chega-te para lá e deixa-me dormir”, lembra.
José acabou um turno de doze horas. Eram quatro da manhã quando saiu de casa, em Aveiras de Cima, onde reside há três anos, após um pequeno-almoço apressado. Antes de chegar ao Porto parou na área de serviço da Mealhada para beber um café. “Andamos em contra-relógio, os tempos são apertados”, diz.

“Tenho que descarregar em vez de estar a descansar”
No posto onde estacionou o camião carregado de combustível esperava-o uma equipa pronta para ligar as mangueiras e descarregar. José vestiu o equipamento de segurança, que inclui vestuário de material anti-estáticos “para não correr o risco de fazer faísca e morrer queimado”, brinca. A descarga dura hora e meia, tempo que José aproveita para descansar.
No caso de João Cláudio não há ninguém que o ajude a descarregar as paletes. “É tudo à unha. Mil quilos à força de braços depois de três horas a conduzir sem parar. Não é justo ter de fazer trabalho que não me compete e não receber nada por isso. Afinal sou pago para estar ao volante”, diz, queixando-se das dores de costas e argumentando que o tempo de descarga deveria servir para o motorista poder descansar.
Refere que se sindicalizou para poder lutar por melhores condições de trabalho e por um salário base mais alto porque o que recebe é à conta de horas extraordinárias. “Se ficar de baixa só recebo 630 euros. Ando cheio de dores e não posso parar de trabalhar. Com este salário não posso pensar em muito mais para além de pagar as contas”, sublinha.
Não esconde a revolta. Com o sindicato, com os patrões. Com colegas que furaram a greve, com as negociações e com o que diz ser uma fantochada. “Os patrões estão feitos com o Governo e nós, motoristas, que nos aguentemos. Para alguns somos vistos como a peça mais barata do camião”.
José também se sindicalizou e continua a acreditar num futuro melhor. “Temos que poder reformar-nos mais cedo e temos que ganhar mais sem ser à custa de horas extraordinárias. Quero ter tempo para viver”, afirma.
Na opinião dos dois motoristas a greve de Agosto passou ao lado de muitos colegas de profissão que tiveram que andar a cumprir os serviços mínimos decretados pelo Governo. “Não nos foi permitido lutar pelos nossos direitos. Fui daqueles que esteve toda a greve a cumprir os serviços mínimos, que afinal foram serviços máximos”, diz José.
Em Aveiras de Cima João Cláudio foi dos poucos a parar no dia 12 de Agosto. “Estava em greve com outro colega mas os outros estavam a trabalhar. Começámos a sentir-nos as ovelhas negras do rebanho e decidimos arrancar com o camião, com medo que nos cortassem no salário. É uma vergonha a falta de união entre motoristas”, lamenta.

“Ouvir rock em altos berros”

Os dois motoristas confessam que têm dificuldade em descansar mesmo quando têm algum tempo para isso e que isso se paga. “Nunca descanso o suficiente. Por vezes tenho medo de me pôr em risco e aos outros na estrada. Há alturas em que, para me manter acordado, molho a cara, abro as janelas, aponto o ar condicionado para os pés”, conta João Cláudio.
Uma das estratégias do seu colega José é ouvir rock muito alto mas por vezes nem isso resulta. “Já me tem acontecido ter mesmo que parar algum tempo numa área de serviço”, diz José.
Os dois colegas dizem que houve alturas em que não trabalhavam tantas horas. Agora é difícil isso acontecer. “Somos uma espécie de escravos. Os patrões dizem que não têm mais motoristas por haver falta de mão-de-obra mas com isso aproveitam e metem um ordenado ao bolso, já que dois motoristas a fazer turnos de 12 horas, no mínimo, acabam por fazer o trabalho de três”, explica João Cláudio, convencido que greve após greve o excesso de trabalho lhes vai continuar a marcar o ritmo de vida.

Camionistas dizem que, para os patrões, são como a peça mais barata dos camiões

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