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Generosidade do povo de Mação recordada mais de 70 anos depois da II Guerra Mundial
Livro evoca papel da população de Mação no acolhimento a crianças austríacas

Generosidade do povo de Mação recordada mais de 70 anos depois da II Guerra Mundial

Um livro de receitas é pretexto para duas austríacas homenagearem a memória das pessoas de Mação que acolheram crianças austríacas fugidas da destruição e fome resultantes da II Guerra Mundial. Uma das filhas de uma refugiada escreveu um livro de receitas das memórias da mãe e da tia.

A 15 de Abril de 1948, depois de uma semana de viagem de barco até Lisboa, seguindo-se comboio até Abrantes e depois de autocarro até Mação, as primeiras 12 crianças austríacas, refugiadas do pós-2ª Guerra Mundial, chegaram ao concelho de acolhimento. “Houve fogo de artifício e tudo”, recordou o maçaense Mário Tropa. “O que não correu muito bem porque as crianças esconderam-se debaixo dos bancos, com medo que se tratasse de bombas e foi uma briga para as tirar do autocarro”.
Acabadas de sair de um cenário de guerra, destruição e fome, “pão” foi a primeira palavra que aprenderam a dizer e ficaram “loucos” quando viram pela primeira vez uma vitrine de uma pastelaria. “As sopas deliciavam a minha mãe e a minha tia. Davam-lhes sopas fortes para combater a anemia” com que chegaram, conta Maria do Rosário Worisch Alvím, autora do livro “Receitas de Vida”, que reúne um conjunto de testemunhos das recordações da mãe e tia no período da infância e adolescência vividos entre Mação, Santarém e, posteriormente, Lisboa. O livro foi publicado em 2018 e apresentado à população de Mação, como forma de homenagem pela atitude altruísta e generosa deste povo, no sábado, 19 de Outubro, no Centro Cultural Elvino Pereira.
Maria Bárbara Worisch chegou primeiro e foi acolhida pelo casal Abílio Tavares e Maria de Lurdes Pedreira Belo Tavares. Abílio Tavares foi presidente da Câmara de Mação e, posteriormente, Governador Civil de Santarém. Erna Worisch, irmã de Maria Bárbara Worisch, chegou um ano depois, em 1949. Com 12 e 11 anos, as duas irmãs ficaram na mesma família de acolhimento, pois não as quiseram separar.
No entanto, dizem os populares que ainda recordam esses tempos, pareciam ter menos idade. “Vinham muito magrinhas” e subnutridas, conta Maria Manuela Alves que, apesar de ser mais nova do que as irmãs Worisch, lembra-se bem do dia da chegada das crianças: “Foi um dia de festa. Estávamos muito ansiosos com a chegada deles e tínhamos muita pena. Pouco sabíamos, porque éramos miúdas e pouco percebíamos do que se passava, mas sabíamos que vinham fugidas da guerra”.
Vir até Mação é como que um reviver de uma experiência indirecta que sempre ouviu mãe e tia contarem. “Falavam-me muito dos cheiros, da paz e, claro, da comida”. A cozinha era o local da casa que as irmãs mais apreciavam. “A linguagem que utilizavam era a gastronómica. A minha mãe apaixonou-se pela sopa de caldo verde”. Ainda hoje, prestes a completar 81 anos, no dia 26 de Outubro, fala nisso. “Em miúda convenceu-se que o caldo verde era feito com relva”, contou Maria do Rosário Worisch Alvím, arrancando sorrisos da parca audiência.
No livro, a autora, além de enquadramento histórico que motivou a vinda das irmãs para Mação, as receitas que viam fazer na casa dos “tios” - nome pelo qual o casal de acolhimento fazia questão de ser chamado, em sinal de respeito pelos pais biológicos - ocupam também lugar de destaque.
A língua nunca foi um entrave para as 12 crianças austríacas se relacionarem com as crianças maçaenses. “Falávamos por gestos e para uma criança é o que basta”, diz entre risos Cremilde Dias Correia.
Um encontro intimista para a apresentação deste livro serviu para o povo de Mação ouvir uma palavra, várias vezes repetida na tarde chuvosa de sábado: gratidão. As memórias ali faladas serviram para aquecer corações e molhar olhares de alguns populares. “Tenho muito orgulho que o povo de Mação tenha feito isto. Éramos muito pobres na altura, não passámos pela guerra, vivíamos com dificuldades mas mesmo assim havia sempre espaço para mais um”, sublinha com o olhar embargado Maria Manuela Alves. “Hoje em dia as pessoas têm mais posses, mas não sei se continua a haver tanta generosidade como naqueles tempos. As pessoas são mais egoístas”, remata.
Maria Bárbara Worisch tem 82 anos. Abandonou Portugal, com o marido, há muitos anos. Viveu em várias cidades da Europa mas foi no Brasil que se estabeleceu e onde ainda reside.
Erna Worisch, também ainda viva, tomou Lisboa como sua casa, de onde nunca mais quis sair. São raras as vezes que se desloca a Mação pelo avançar da idade e por motivos de doença, mas em mais nova visitava com alguma regularidade a vila que lhe proporcionou um renascer.

Trinta crianças austríacas viveram em Mação
No total, ao concelho de Mação chegaram 30 crianças refugiadas da Áustria, das 3.839 que chegaram a Portugal entre 1947 e 1952 - doze no ano de 1948 e dezoito em 1950. Foram distribuídas entre a sede de concelho e as freguesias de Envendos e Cardigos. As crianças vinham através de um programa da Cáritas, denominado Famílias de Acolhimento, ao qual Mação abriu os braços.
Estes dados, bem como fotografias das crianças em Mação, cartas escritas por elas aos pais e outros documentos da época foram reunidos pelo maçaense Mário Tropa, com a ajuda da Embaixada da Áustria e da Câmara de Mação. “Tudo começa por uma memória. Depois vem a curiosidade. E desde que haja vontade, as coisas fazem-se”, disse. O resultado é a exposição documental que foi também inaugurada no mesmo dia, “Crianças Austríacas da Cáritas em Portugal”, que pode ser vista até ao fim do mês de Outubro.

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