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Textos que fizeram história
Francisco Nunes de Oliveira foi o responsável pela iniciativa original

Textos que fizeram história

A cumprir o seu 33º ano de publicação O MIRANTE decidiu republicar um conjunto de entrevistas, reportagens e outros textos editados nos primeiros anos. São matérias que já só podem ser encontradas em edições em papel e que agora vão passar a estar disponíveis também na Internet e só isso já justificaria a iniciativa. Mas são também textos que vale a pena ler por manterem uma surpreendente actualidade ou por revelarem informações e opiniões que ajudam a perceber melhor o percurso do jornal e da região.

Excitações na Golegã com a pintura de modelos semi-nus

Francisco Nunes Oliveira e a experiência de uma outra forma de arte

O cantor Pedro Barroso avançou pelo meio do fumo até ao pequeno palco fortemente iluminado. Pegou num pincel, rasgou de um golpe a túnica branca de uma das mulheres acorrentadas e pintou-lhe o seio esquerdo de verde. Um verde seco, musgo velho. Depois, com uma pincelada decidida de preto, prendeu um braço de uma outra à parede. Estávamos na Golegã, no “Brevemente Bar”.
Outro homem seguiu o cantor e o exemplo. Rompeu pelo meio de dezenas de pessoas que se acotovelavam na pequena cave e escolheu o encarnado vivo. Sangue. Pintou para castigar. A mulher da direita estremecia. O rosto revelava sofrimento. A da esquerda sorria desdenhosa. O texto de apresentação, distribuído à entrada, propunha: “Vamos julgar duas personagens femininas, confrontando o pecado com o não pecado. As tintas são o castigo, mas só no início. Depois vem a mudança, ser-se pintado deixa de ser castigo e transforma-se em prazer. No final, vem “a excitação e atinge-se o orgasmo”.

O pintor
Não se atingiu o orgasmo, mas os espectadores saíram satisfeitos. A “Performance”, encenada na madrugada de 19 de Janeiro de 1992, foi uma experiência nova para quem assistiu e mais nova ainda para quem assistiu e participou. Francisco Nunes de Oliveira, pintor, responsável pela iniciativa, relata o percurso e os objectivos.
“Comecei na Amadora em 1984. Primeiro pintei um modelo e uma tela, depois dois modelos e uma tela e, por fim, com o Joaquim Baltazar, pintámos oito modelos, não sei bem dizer se semi-vestidos se semi-despidos... O Mário Lindolfo viu o trabalho e repetiu-o no programa “A semana que vem”, da RTP. Viram-me pintar o corpo de um modelo feminino.
Na semana seguinte no Jardim Zoológico de Lisboa, com a ajuda de um chimpanzé, pintei e dei o corpo a pintar. Seguiu-se a Caparica e aí, com o Miguel Yeco, pintámos, com a colaboração do público, dois modelos e um jornalista do “Tempo”. A ‘performance’ de hoje, aqui na Golegã, correu muito bem. Acho que a assistência, afinal os pintores, conseguiram um bom resultado com os modelos femininos.”

Os Pintores
Cerca da meia-noite Mariana Vilas desce cambaleante, amparada ao corrimão, os dois lances de escada, frios, de cimento, do “Brevemente Bar”. Vai descalça. Apenas uma túnica branca sobre o corpo. Passa pelo meio do público e vai até ao palco. Luzes, fumo, música. Uma cabeça numa bandeja, em cima de uma cadeira. Uma voz, uma canção revolucionária francesa de 1793, um refrão “A la guillotine”. No rasto dela vem Susana Ferreira, vestida de igual. Vão ser julgadas por todos os presentes.
O pintor acorrenta-as. As acusações vão sendo lidas. O castigo é imediato, Francisco Oliveira vai pintando sobre as vestes e sobre os corpos. Convida outras pessoas. Vão algumas, relutantes, expectantes. Decididas e desinibidas, outras. E pintam. Há uma câmara da RTP e máquinas fotográficas. As pessoas apertam-se no espaço exíguo, procurando o local para ver melhor.
“Penso que esta forma de pintar, de trabalhar em artes plásticas, é extremamente cativante. É uma maneira simples de conseguirmos que o público, que a gente, perca o medo às pinturas e aos pincéis”, dirá o dinamizador da iniciativa.
A curiosidade é muita. A participação é escassa. Abrevia-se a punição. Vem o momento de prazer. Artista e modelos envolvem-se numa coreografia de cores e corpos. Caem as correntes, vai o sofrimento. A música agora é viva, alegre, Vivaldi. O Ministério da Saúde entra também. Uma jovem de cesta pelo braço e olhar enigmático, distribui pequenos rolos de papel. Amarrados. Ninguém abre na altura. São folhetos da Comissão Nacional de Luta contra a SIDA.
Apesar da euforia nenhuma das modelos se desnuda por completo. Não se cumpriu a profecia da má-língua de sábado à tarde na Golegã. Não houve “striptease” no “Brevemente Bar”. A palavra é do pintor, outra vez. “Os vestidos estavam preparados para cair. Mas podiam cair como podiam não cair. Não importa. Eram apenas um suporte de pintura e uma pessoa muitas vezes não pinta a tela toda”.

As pinturas
Os modelos passeiam agora por entre o público, tentando transmitir o prazer de serem pintados. Tocam rostos e mãos, mas não forçam o contacto. Evitam os menos receptivos. A maioria está preocupada em ficar com a roupa manchada de tinta. Está frio. Para elas está frio. Vê-se na pele dos braços. Arrepiada. Tipo pele de galinha depenada.
Um espectador entusiasta abraça uma modelo. Fica todo a cores, da cabeça aos pés. Envolvido. Ficam outros pintados. Ninguém se queixa. No final, na pequena casa de banho, é um corrupio para tirar a maior, com água e sabão. Tira-se a tinta, lavam-se os corpos. Os modelos e o artista partem para outro lado a caminho do banho. Grandes quadros, embrulhados em plástico negro para não sujar os estofos dos carros. Pintura efémera aquela. Ficaram apenas as emoções no museu dos nossos sentidos.
Texto de Alberto Bastos e Fotos de Joaquim António Emídio • Reportagem Publicada na edição de 31 de Janeiro de 1992 • Texto editado.

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