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Ambição e princípios fazem de João Henriques um dos melhores treinadores de futebol do país
João Henriques sentese nostálgico quando regressa ao centro histórico de Tomar

Ambição e princípios fazem de João Henriques um dos melhores treinadores de futebol do país

João Henriques, 47 anos, é o treinador de futebol do momento em Portugal. O técnico natural de Tomar bateu todos os recordes do Santa Clara na primeira liga de futebol profissional, com destaque para o 4-3 alcançado no estádio da Luz contra o Benfica. Ambicioso por natureza, mantém o carácter humilde para ser fiel à educação que os pais lhe deram e um exemplo para as suas filhas, Beatriz e Carolina. A entrevista com O MIRANTE realizou-se no Jardim do Mouchão, junto ao Estádio Municipal de Tomar, um local que faz parte das suas memórias afectivas. Antes da conversa, a caminho do local, foram várias as pessoas que saudaram João Henriques e o felicitaram pelo seu trabalho.

Há nove anos disse a O MIRANTE que as suas duas filhas, Beatriz e Carolina, cobravam muito as ausências do pai. Deu a volta à questão?

Nem por isso. Mesmo quando estou perto fisicamente estou distante, porque a vida de treinador é assim. Estamos sempre envolvidos no trabalho. Elas foram crescendo com um pai ausente. Estão mais adaptadas a esta realidade porque já estive na Arábia Saudita, nos Emirados Árabes Unidos, e dois anos nos Açores. A Beatriz, que entrou agora para a faculdade, compreende melhor a situação, mas a Carolina, com 14 anos, precisa mais da presença do pai. Por isso é que nesta altura em que estou parado quero ficar o mais perto possível da família.

Com a sua mulher é mais tranquilo?

Sim. Conhecemo-nos quando eu já estava no mundo do futebol. Foi-se habituando ao longo do tempo.

Há quanto tempo não vem a Tomar para estar com a família?

Já nem me lembro. A minha família continua a viver aqui. Nunca quiseram sair da terra. Vinha cá fazer visitas de médico. Espero recuperar o tempo perdido nesta fase.

Sente falta do ambiente da terra natal?

Tomar é uma cidade extraordinária para se viver. Mas a realidade do futebol na região está muito abaixo das minhas ambições. Fui obrigado a sair da minha zona de conforto. Sinto muita falta da família, dos amigos e dos locais onde cresci. Esta zona onde estamos (centro histórico) foi onde passei a minha infância. Sinto muita nostalgia quando venho aqui.

Coisas da infância…

Fui muito feliz. Comecei desde cedo a envolver-me no mundo do desporto por influências familiares. O meu pai era dirigente da União de Tomar quando estava na primeira divisão. Cresci dentro do balneário daquelas equipas. O meu avô, uma pessoa muito importante na minha vida, era enfermeiro do clube. Apesar do futebol ser a minha grande paixão, os meus pais davam-me oportunidades para me desenvolver pessoalmente. Estudei inglês e francês, música no conservatório, tudo ferramentas que hoje me permitem olhar para as coisas de uma forma mais abrangente.

Os ídolos da infância/adolescência foram importantes?

A primeira grande competição onde começo a ver o futebol com outros olhos foi o Europeu de 1984. A selecção nacional jogava com o Chalana, Jordão, Fernando Gomes. Grande equipa. A França com o Platini, e o Brasil com o Zico e o Sócrates, também enchiam as minhas medidas.

É visto como um homem frontal e ambicioso mas de carácter e humilde.

Os meus pais sempre me disseram que a minha principal preocupação devia ser o respeito pelas outras pessoas. Longe de mim chegar a casa vindo da escola com um recado na caderneta por mau comportamento. São esses princípios que ainda hoje mantenho.

Que o faz ter sempre os pés assentes na terra?

Aprendi a sonhar e a ser ambicioso sem nunca esquecer as minhas raízes. Costumo dizer aos meus jogadores que para estar onde estou passei por clubes sem condições mínimas de trabalho, balneários minúsculos, equipas em que acumulava três ou mais funções. Essas circunstâncias fazem-me dar mais valor ao que tenho agora: uma equipa técnica com sete elementos a treinar equipas da primeira liga.

Nunca pensou desistir?

Claro que sim. Levei muita pancada. Fui seguindo de etapa a etapa, ultrapassando obstáculos com um grande espírito de sacrifício.

Ter chegado ao futebol profissional em apenas três anos e ser considerado um dos melhores treinadores deixa-o vaidoso?

Sim, mas é uma vaidade pelo orgulho do trajecto realizado. Quando as pessoas me perguntam quem foi o empresário que me colocou na primeira liga, sinto vaidade em dizer que não tinha empresário. Sabia que mais cedo ou mais tarde o meu esforço iria ser recompensado.

Nunca teve receio de ser apenas mais um treinador no meio de muitos?

Nunca pensei dessa forma. Tento colocar o negativismo de parte. Reconheço que há demasiados treinadores para a quantidade de equipas nos nossos campeonatos. Mas também sofri com injustiças. Perguntava-me muitas vezes: “porquê ele e não eu?”. Sabia, no entanto, que ao fechar-se uma porta, abria-se uma janela. Foi um trajecto duro até aqui chegar mas quero deixar claro que a primeira liga é apenas mais um degrau para chegar onde quero chegar: o campeonato Inglês.

“Fui despedido do CD Fátima porque não coloquei um guarda-redes a jogar”

A sua carreira começou como treinador estagiário no Sporting Clube de Portugal, o seu clube do coração. Treinar a equipa principal do Sporting é a sua cadeira de sonho?

A minha família é toda do Sporting e eu também fui por influência. A partir do momento em que percebi que a minha vida passava por ser treinador de futebol deixou de existir o clube do coração. Comecei a preocupar-me mais com os modelos e as estruturas do jogo. Deixei de ver o futebol como um adepto normal. A cadeira de sonho nesta altura é encontrar um clube que me dê mais do que o Santa Clara me deu nestes dois anos. Só posso ser treinador se não desistir dos meu sonhos.

Voltou para casa ao fim de dois anos mas só em 2003 assume o papel de treinador principal do Rio Maior. Como foi o caminho até chegar a líder?

Regressei a Tomar para ser adjunto do Mário Ruas nos sub-13. Fomos campeões distritais e subimos à 3ª divisão. Entretanto saí e continuei a trabalhar com o Mário no Riachense e em Abrantes. Surgiu o convite do Paulo Leitão, que treinava o Fátima, onde também fui adjunto. Fui com ele para Rio Maior e um ano depois assumi o comando da equipa principal. Os quatro anos como adjunto foram fundamentais para a minha aprendizagem.

Na região treinou o Assentis, Almeirim, Torres Novas e Riachense. Qual foi a experiência que mais o marcou?

Todas foram muito importantes. Deu-me mais gozo treinar o Fátima por que numa época ganhámos quase todos os jogos com excepção de dois jogos em que empatámos.

O que correu mal para não continuar mais tempo no Fátima?

Questões de princípios. Abandonei o clube no dia do meu aniversário, 31 de Outubro, porque o administrador na altura queria obrigar-me a pôr a jogar um guarda-redes que eu não queria. Como sou eu que mando nas minhas equipas não lhe fiz a vontade. No dia seguinte recebi a notícia que tinha sido despedido. Saí de um projecto que tinha tudo para no ano seguinte estar na segunda liga porque fui fiel aos meus princípios.

Seguiu-se o Leixões na segunda liga.

O Daniel Kennedy quase que me obrigou a ir para seu adjunto. Não queria dar um passo atrás e já tinha tudo tratado para treinar o 1º de Dezembro. Tive a sorte de ir ver um jogo do Leixões contra o Praiense, no Estádio do Mar, com as bancadas cheias. Percebi que era neste ambiente que devia estar. No ano seguinte tomei conta da equipa e foi aí que as portas se abriram para ser treinador profissional.

Ainda acompanha o futebol da região?

Não acompanho por questões profissionais mas tenho uma opinião formada há muito tempo. Na região centro o investimento no futebol baixou significativamente. A estrutura socio-económica da região não permite que os clubes tenham uma base sustentável porque as empresas não têm dinheiro para investir. Não é por acaso que grande parte dos clubes de sucesso estão na zona norte do país, ou em Lisboa. É aí que está o tecido empresarial e o poder e influência.

Como é que chegou a presidente do Sporting de Tomar?

Principalmente porque o Sporting de Tomar não tem futebol. Ser presidente de um clube nunca me tinha passado pela cabeça, mas o clube precisava de ajuda. Estava na segunda divisão de hóquei em patins e o seu lugar sempre foi na primeira. O Sporting de Tomar também fez parte do meu crescimento: fui jogador de futsal do clube e ainda passei pelo tiro com arco. Uma lesão no joelho, que obrigou a oito meses de recuperação, também ajudou à decisão de abraçar o projecto.

É uma experiência a repetir?

Nem pensar (risos). É uma responsabilidade muito grande ser presidente de um clube. Mas foi uma experiência muito enriquecedora que me fez aprender como se gere um clube por dentro. Neste momento quando estou a falar com dirigentes de clubes, sei o que é que eles estão a pensar e o que sentem. É uma mais valia para um treinador. Ter sido jogador de futebol, dirigente, formador e treinador dá-me uma capacidade de antecipar e resolver problemas, em vez de criar obstáculos.

No Santa Clara bateu todos os recordes e fez história no clube. Há algum segredo para contar?

Trabalho e dedicação. Um bom treinador deve ter várias características. Uma delas é saber comunicar para dentro do clube e para fora. Sempre fui muito elogiado pela forma objectiva e clara como comunico com a imprensa, por exemplo. Não menos importante são as competências técnico-tácticas que definem o modelo de jogo que pretendemos utilizar. As minhas equipas sempre jogaram um futebol agradável, olhos nos olhos, sem medo de enfrentar o adversário. Esse é o segredo que está à vista de quem quer ver.

Os treinadores ainda castigam os jogadores quando se portam mal?

Temos de contextualizar as gerações. Hoje um jovem com 20 anos não é o mesmo que era há 15 anos. As redes sociais têm muita culpa. Há jogadores que levam uma ‘dura’ e reagem bem, e outros que levam a mal e começam a boicotar a nossa liderança. Lidar com pessoas, de nacionalidades e culturas diferentes, é um grande desafio, mas tenho conseguido que os meus jogadores compreendam as regras sem nunca ter de as impor.

Um treinador é psicólogo, pai, irmão, professor…

Comparo muito a relação com os jogadores com a que tenho com as minhas filhas. Às vezes precisam mais do mimo e do carinho, mas há alturas em que tenho de levantar a voz para as colocar no caminho certo. Claro que também erro, e sou o primeiro a assumir, mas as hierarquias têm sempre de ser respeitadas.

O João Henriques treinador difere muito do João Henriques que conhecemos do meio familiar e de tertúlia?

Sou muito mais brincalhão e descontraído fora do ambiente profissional. Pessoalmente sou muito despistado, contrariamente à postura metódica e organizada que tenho quando estou a trabalhar. Para ter algum descanso psicológico preciso de sair da linha de vez em quando.

A vitória do Santa Clara contra o Benfica (4-3) foi o melhor momento da sua carreira?

Tenho dois momentos que guardo na memória para sempre. O primeiro jogo contra uma equipa da primeira liga, no Leixões-FC Porto, em que empatámos 0-0. Foi aí que comecei a ser visto como um treinador à seria. O jogo contra o Benfica vale pelos números e pelo atrevimento que tivemos. Nos últimos dez minutos, empatados a 3 golos, eramos nós que estávamos à procura do golo da vitória. A irreverência das minhas equipas faz parte de um trabalho invisível que sabe bem ver recompensado.

Está preparado para treinar um dos três grandes?

Os passos que dei na carreira foram sempre sustentados. O que sinto é que, olhando para outros treinadores da primeira liga, estou igualmente preparado para abraçar qualquer projecto. Com uma vantagem: não caí aqui de pára-quedas, tive de passar por todas as etapas.

Onde é que vai treinar na próxima época?

Sinceramente não sei. Saí do Santa Clara porque a direcção quis manter o mesmo projecto. Estive perto de assinar por um clube para lutar pelos primeiros sete lugares da tabela, mas não aconteceu. Agora há duas hipóteses: ou vou para o estrangeiro ou espero que apareça um projecto em Portugal que me garanta um passo em frente na minha carreira.

Uma história surreal nos Emirados Árabes Unidos


João Henriques foi em 2012 para a Arábia Saudita como treinador adjunto do Al-Ahli Jeddah. No ano seguinte fez parte de um projecto, coordenado por José Peseiro, no Al Wahda dos Emirados Árabes Unidos onde foi treinador da equipa B do clube. “Tive oportunidade de ver e estar por dentro do trabalho do José Peseiro, uma referência dos treinadores portugueses. Aprendi muito com aquela cultura. Se hoje sou menos impulsivo nas minhas reacções devo a essa experiência”, assume.
Dois anos nas arábias foram suficientes para encher um baú de histórias marcantes mas João Henriques recorda uma em especial, que tem o médico do clube como protagonista: “Chegou junto de mim e disse-me que o meu melhor jogador não podia jogar mais. Perguntei se ele estava lesionado e respondeu-me que não, que o miúdo simplesmente não estava a crescer. Como não percebi contestei e levei com a resposta mais surreal da minha vida: ‘se ele não treinar, toda a energia vai para o seu crescimento e ele cresce mais depressa’. Fiquei sem o jogador e ele de facto cresceu porque tinha 13 anos e com essa idade todos crescem naturalmente com o passar do tempo” (risos).

Questionário de Proust

Qual é a característica que menos gosta em si?

Teimosia.

Qual a pessoa que mais admira?

Os meus pais.

E a personalidade que mais admira?

Jurgen Klopp, treinador do Liverpool.

Em que ocasiões mente?

Quando há necessidade e não prejudica ninguém.

Que talento gostaria de ter?

Tinha de dizer uma asneira para responder como quero. Mas vou-me ficar pelo gostaria de ser mais sacana.

Qual considera ser a sua maior conquista?

Ter chegado à primeira liga sem empresário.

O que mais valoriza nos seus amigos?

Lealdade.

Quem são os seus artistas favoritos?

A banda U2.

Qual é o livro da sua vida?

A Arte da Guerra do Sun Tzu. Tem sido um bom parceiro porque o futebol também é uma guerra.

E o filme?

Estou a ver uma série chamada ‘The English Game”. Treinar no futebol Inglês é o meu grande objectivo.

Qual é o seu maior arrependimento?

Não me arrependo de nada. Mesmo as coisas negativas aprendi com elas.

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