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Muita gente continua a acreditar que a SIDA  é uma doença de homossexuais 

Há registo de homens que infectam as esposas devido a relações extra-conjugais

Não há vacina para o HIV/SIDA mas há tratamentos cada vez mais eficazes. Se o número de casos aumenta é por simples ignorância ou falta de cuidado. No distrito de Santarém, por exemplo, foram registados mais quatrocentos infectados no espaço de um ano.

João Cunha é assistente hospitalar da especialidade de Infecciologia do Hospital Distrital de Santarém

Jovens de vinte anos não ligam e ficam em choque quando descobrem que têm SIDA

O Hospital Distrital de Santarém (HDS) está a acompanhar 1300 pessoas infectadas com VIH (Vírus da Imunodeficiência Humana), mais cerca de 400 pessoas do que em 2019. Os doentes são maioritariamente de todo o distrito mas há alguns de outros lados.
O VIH/SIDA começou por ser uma doença muito associada à comunidade homossexual mas actualmente cerca de metade dos casos afectam pessoas heterossexuais. Apesar disso há quem, por ignorância, continue a acreditar que é uma doença de homossexuais.
João Cunha, assistente hospitalar da especialidade de Infecciologia do HDS, diz que, pela sua experiência, a doença continua a ser muito estigmatizante e que há muitos doentes que escondem que são portadores.
“Neste distrito o estigma começa no próprio doente, porque ainda associam muito esta doença à comunidade homossexual e não querem ser conectados com essa orientação sexual. Além disso, como é uma doença que se transmite sexualmente ajuda a que as pessoas optem por não falar e omitir”, sublinha.
Aquela situação gera graves problemas. O médico explica que existem situações de homens com mais de 60 anos que infectaram as suas esposas devido a relações extra-conjugais.
“Psicologicamente é muito duro para estas senhoras, que se confrontam com a realidade de terem sido infectadas através do seu parceiro”, afirma, acrescentando que a grande maioria continua casada.
João Cunha explica que o principal problema para os contágios é o facto das pessoas não gostarem de usar preservativo. E não são só os mais velhos. Na faixa etária mais jovem há uma banalização em relação à doença o que leva a não o utilizarem.
“O problema é que existem várias doenças sexualmente transmissíveis, além da SIDA, e que também são graves como a clamídia, gonorreia, sífilis e é preciso muito cuidado. O preservativo é indispensável”, alerta, acrescentando que há jovens com cerca de 20 anos que ficam em choque quando confrontados com o diagnóstico. “Acham que é uma doença que só afecta os outros e não é verdade”.
O tratamento da doença, que surgiu no início da década de 80 do século passado, teve uma grande evolução. Actualmente é considerada uma doença crónica com vários tratamentos e, desde que o doente seja acompanhado, em nada limita a qualidade de vida.
“A medicação está super desenvolvida, é altamente tolerável, com poucos efeitos adversos, o que permite uma vida normal, com os cuidados inerentes à doença. Os pacientes com HIV são, possivelmente, os doentes melhor acompanhados”, refere João Cunha.
O médico lamenta que nos últimos anos tenha havido um desinvestimento na informação sobre a doença. Além disso, realça, a educação para a saúde em termos sexuais “deixa muito a desejar e em casa não se fala muito de sexualidade”. O especialista diz que as pessoas sabem que a doença existe mas nem todos têm acesso a informação correcta e adequada.
João Cunha explica que quando a infecção se instala há vários órgãos que são afectados, nomeadamente os testículos, intestinos e também o sistema nervoso central. “O vírus consegue integrar-se dentro das células e esconder-se, o que faz com que não haja uma vacina”, explica. E sobre vacinas refere que, mesmo depois da vacina para a Covid-19, a doença vai continuar a circular. A diferença é que nessa altura os humanos já adquiriram imunidade de grupo contra o novo coronavírus.
Sobre a Covid-19, o médico garante que os constrangimentos causados a nível do Serviço Nacional de Saúde não têm atrasado consultas nem tratamentos a pacientes com HIV. Durante o confinamento o Hospital de Santarém enviou medicação para as farmácias da área de residência dos doentes para evitar que se deslocassem ao hospital.
No distrito de Santarém os rastreios do HIV/SIDA são feitos através do pedido de análises ao médico de família, podendo também a própria pessoa deslocar-se aos laboratórios de análises. João Cunha defende que Santarém precisa de um local onde se faça o rastreio ao HIV para tornar tudo mais acessível e detectar novos casos mais rapidamente.

Tânia Gomes tem assistido a uma redução dos novos casos de infecção por VIH na comunidade toxicodependente do concelho de Vila Franca de Xira

“Conheço famílias que metem os infectados a comer com talheres diferentes”

Ainda subsiste muita ignorância e discriminação na comunidade e nas empresas para com a comunidade toxicodependente que está em recuperação e é portadora de VIH, o vírus da imunodeficiência humana. Quem o diz é Tânia Gomes, psicóloga clínica e presidente da Associação de Promoção da Saúde e Desenvolvimento Comunitário de Vila Franca de Xira, entidade responsável pela gestão dos núcleos de atendimento a toxicodependentes (NAT) daquele concelho.
Naquela comunidade há cada vez menos novos casos de infecção. Dos 400 utentes seguidos nos NAT em 2018 estavam identificados 76 utentes portadores de VIH. Desde então até 2020 apareceram apenas dois novos casos de infecção, sendo hoje 78. Um balanço positivo que mostra que o trabalho desenvolvido está no bom caminho.
“O mais difícil após o utente saber que está infectado é ele conseguir partilhar com os outros essa informação. Há muitos tabus acerca do tema. Há muitas famílias que quando sabem discriminam. Tenho utentes que em casa deixaram de comer com os mesmos talheres e pratos da restante família. Isso é uma perfeita ignorância”, critica.
Graças às novas medicações nem todos os infectados desenvolvem a síndrome de imunodeficiência adquirida, conhecida por SIDA. “As pessoas estigmatizam quem tem HIV. Tenho um doente que lida bem com o facto de ter o vírus e foi a uma entrevista de emprego. Disse na entrevista que tinha HIV e depois não foi chamado. As empresas nem sequer devem ter acesso a esse tipo de informação. Ninguém é melhor ou pior trabalhador se tiver HIV. Quem faz tratamento tem carga viral baixíssima”, explica.
Tânia Gomes nasceu na região do Minho e vive em Lisboa, tem 43 anos e trabalha há quase duas décadas em Alverca. Actualmente dá as suas consultas de acompanhamento no centro de saúde do Bom Sucesso. A redução dos novos casos de HIV deve-se também a uma mudança no padrão dos consumos, passando dos injectáveis – onde se partilhavam seringas – para outras drogas que se fumam, como a cocaína. Mas também aí não há garantias de risco zero. “Basta um lábio com ligeiro sangramento para passar o vírus a outra pessoa caso se partilhe o cachimbo”, avisa.
Tânia acompanha doentes que fazem uma vida perfeitamente normal há duas décadas. Têm hoje entre 40 e 50 anos, famílias constituídas com mulher e filhos e que contraíram o vírus quando tinham 20 anos ou menos.
“Na toxicodependência os casos têm sido cada vez menos mas nos jovens com comportamentos de risco acredito que a situação tenha disparado. Hoje em dia estamos a falar sobretudo de quem tem um comportamento sexual promíscuo e sem protecção”, explica.
Nos últimos anos a subida do número de casos de VIH no concelho aconteceu, em parte, porque os utentes que eram seguidos nas unidades hospitalares de Lisboa – e que contavam para as estatísticas na capital - passaram a frequentar a unidade de infecciologia entretanto criada no Hospital Vila Franca de Xira.

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