Do campo para o palco ainda há quem mantenha a herança do marialvismo

O fado marialva, marcado pela exaltação do campo, dos touros e dos cavalos, continua a encontrar vozes que lhe dão vida, apesar de ser uma expressão cultural cada vez mais afastada das novas gerações. Fadistas e músicos, em que alguns são simultaneamente agricultores no activo ou na reforma, defendem a importância de preservar os valores associados ao marialvismo enquanto questionam as mudanças sociais que vão afastando o público deste universo.
O fado marialva, uma das vertentes mais tradicionais do fado, continua a ser uma expressão viva de um mundo onde o campo, os cavalos e os touros são protagonistas. No entanto, as mudanças sociais e culturais têm levado ao declínio da sua popularidade, um fenómeno que não passa ao lado dos seus principais intervenientes.
Luís Petisca é professor de Educação Musical durante o dia e à noite podemos vê-lo actuar em vários palcos a dedilhar na sua guitarra portuguesa. Natural da Chamusca, defende a continuidade do fado marialva, apesar da crescente indiferença das novas gerações em relação à cultura taurina e equestre. “Hoje em dia, com esta cultura oca, parece mal gostar-se de touros e do marialvismo. Mas é uma questão cultural, não é bom, não é mau, é o que é”, afirma. Para o músico, o marialvismo sempre esteve associado à coragem e à masculinidade, mas sem o peso do machismo que alguns lhe associam. Diz mesmo que na relação homem/mulher achava-se que os homens é que mandavam, mas na verdade nunca foi assim, refere, sorrindo.
Pela sua experiência, enquanto professor, esta tendência pode ser invertida se os adultos complicarem menos e dá um exemplo: numa das suas aulas falou-se de campinos e do fandango e, apesar da escola bloquear o acesso a conteúdos tauromáquicos pela internet, conseguiu mostrar o trecho de um espectáculo taurino e a reacção dos estudantes não foi a que esperava. Adoraram e naquela turma havia todo o tipo de pessoas e cultura. Estavam divertidíssimos a ver a tourada, portanto, deixem-nos escolher, defende Luís Petisca.
“Querem terminar com aquilo que faz parte de todos nós”
À margem de um espectáculo de fado marialva no Porto Alto, Armando Figueiredo, que é instrumentista e alfacinha de gema, realça a O MIRANTE que partilha da mesma preocupação quanto ao futuro do marialvismo. “Defendo-o como todas as outras tradições para que não acabe, porque há aí uns movimentos estranhos que, sem conhecimento, querem terminar com aquilo que faz parte de todos nós”, vinca. Para o músico, o que interpreta à viola retrata um modo de vida mais sereno, afastado da agitação das cidades. Nos meios rurais fazem-se amizades para a vida. Ainda há almoços, jantares, encontros regulares, ao contrário do que acontece nas grandes cidades.
Vindo de uma família tradicional, crê nos costumes antigos e diz ser diferente daqueles que até podem ter os mesmos valores, mas depois querem acabar com determinadas coisas por ser uma questão de moda ou de partidarismo.
Para Ricardo Pereira, fadista e proprietário de uma pequena empresa ligada ao mundo agrícola, o fado marialva é um reflexo das vivências do campo e da ligação à agricultura, nomeadamente aos cavalos, touros e até às mulheres. Sempre houve essa ligação nos pós-corridas, nos jantares de campo, nos passeios a cavalo ou nos treinos de forcados, explica. No entanto, reconhece que esta identidade cultural tem vindo a perder força. O marialvismo, até naquilo que tem a ver com a boémia, está a desvanecer-se porque há menos afinidades entre as pessoas. Os tempos são outros e há outras formas de se encontrarem. Pode ser uma tendência cíclica e voltar um dia, mas, para já, perdeu expressão.
Intelectualizar o fado é cair num caminho errado
Os elementos integrantes do grupo Fado Marialva partilham a crença nos costumes antigos, naquilo que cada um interagiu com os bisavós ou avós, porque nessas origens familiares aprenderam o gosto pela vida rural. Musicalmente dizem não cantar o poema por cantar, justificando que tudo é sentido, porque todos viveram o que é cantado no fado. O público sente isso e identifica-se bastante, sobretudo nos meios rurais.
Sempre ligado à agricultura, mas já reformado, Rodrigo Pereira, de 70 anos, acredita que a mudança é sobretudo social. “Hoje em dia o espectro do marialvismo está démodé, é uma questão de evolução dos tempos. Mas não morre facilmente”, afirma. O fado nasce no apogeu dessa época ligada ao Marquês de Marialva, que era cavaleiro e um homem ligado à tauromaquia, enquanto canção urbana de Lisboa, mas teve sempre uma grande componente ligada à província, nomeadamente ao Ribatejo e à Estremadura. Rodrigo Pereira diz ainda, relativamente à Canção Portuguesa, que é daqueles que pensa que quando se quer intelectualizar o fado se está a cair no caminho errado.
Manuel da Câmara, fadista de 61 anos e filho de Vicente da Câmara, reforça a importância de preservar esta tradição. “O marialva é, por vezes, entendido como algo depreciativo. Não é por acaso que existe a expressão ‘estás armado em marialva’. Mas é o fado que tem a ver com o campo, os touros, os cavalos e com as nossas vivências”, explica.
O marialvismo enquanto história, cultura e identidade
O marialvismo, enquanto conceito cultural e histórico, está profundamente enraizado na sociedade portuguesa, reflectindo uma visão particular da masculinidade, das hierarquias sociais e da identidade nacional. Ligado à figura do Marquês de Marialva, esta corrente de pensamento e comportamento destacou-se na aristocracia e na ruralidade portuguesa, consolidando-se como uma das matrizes culturais do Ribatejo e do Alentejo, regiões onde a tauromaquia e o fado marialva se tornaram expressões artísticas e identitárias.
O termo “marialva” remonta ao século XVIII e deriva de D. Pedro de Alcântara de Meneses, Marquês de Marialva, um nobre ligado à arte equestre e à tauromaquia. A sua obra “Luz da Liberal e Nobre Arte de Cavalaria” estabeleceu os fundamentos da equitação portuguesa, popularizando a arte do toureio a cavalo. O marialvismo consolidou-se enquanto ethos aristocrático e boémio, conjugando uma estética de valentia e elegância com uma atitude descomprometida perante a vida.
Ao longo do século XIX, o marialvismo expandiu-se para além dos círculos nobiliárquicos, sendo apropriado por diversos estratos sociais. A ligação ao fado deu-lhe uma dimensão popular, sobretudo através da figura do Conde de Vimioso, conhecido pela sua relação com a mítica Severa. Este cruzamento entre aristocracia e marginalidade urbana evidenciou-se na Lisboa oitocentista, onde marialvas e fadistas partilhavam tertúlias, tabernas e espectáculos tauromáquicos.
Na tauromaquia, o marialvismo encontra a sua máxima expressão na figura do cavaleiro tauromáquico. Este representa a síntese do ideal marialva: nobre, destemido e senhor da arte equestre. A tourada portuguesa, com a sua estética ritualizada e o culto do destemor, é um palco privilegiado para a afirmação destes valores.