Serranos, Campinos e Bairrões - Personagens que Povoam os Textos - O Velhote da Bisca
Eu ainda sou do tempo em que os filhos não fumavam deante dos pais, mesmo os que já haviam casado e constituído família.
Personagens que Povoam os Textos - O Velhote da Bisca1
Eu ainda sou do tempo em que os filhos não fumavam deante dos pais, mesmo os que já haviam casado e constituído família sobre si, como ali se diz; não faziam a barba a primeira vez, sem que o pai desse a sua autorização, verbalmente, ao barbeiro, não se iam deitar sem beijar a mão a seus pais2, nem se levantavam sem praticar o mesmo sinal de respeito e de obediência.
Lembro-me ainda de que, pelas aldeias, por onde passei os primeiros anos da minha meninice, um filho não podia jogar às cartas na presença do pai, porque este não lho consentia, nem o pai na presença do filho, porque era mau exemplo.
Conheci, no entanto, um velhote, que, moído do trabalho e das tormentas da vida, já não podia trabalhar; e passava os dias, sentado nos poiais do adro, ou nos bancos das tabernas, sempre de contas na mão, rezando, quase em voz alta, os seus padre-nossos e ave-marias, com incansável cuidado. Gostava do jogo da bisca; e, se adregava encontrar-se junto dos que jogavam, ia espreitando o jogo do que lhe ficava mais próximo, e ia dizendo:
–Ademaria, cheia de graça, o Senhor é convosco… joga-le ua bisca, que a nã perdes, e bendita sões
vós entre todas as mulheres… mete-lhe agora um ganelhozico dum trunfo que é maré, e bendito é o
fruito do vosso ventre… á palerma que a deixastes ir… do vosso ventre, Jasus…
E assim passava tardes inteiras, aliando com a maior facilidade as suas
crenças religiosas, com as exigências da bisca lambida…
1 Escrito em 1939 por Francisco Serra Frazão em Santarém.
2 O rosto é que não; seria muita confiança.