O livro de cada dia nos dai hoje
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O título desta crónica foi roubado de um texto que Onésimo Teotónio Almeida escreveu como prefácio a um texto de George Steiner, publicado pela Gradiva, que acaba de chegar às livrarias.
O meu dia de trabalho hoje acabou com uma reunião onde soube que um colega da gestão comercial caminhou durante semanas, de surpresa, para uma empresa onde recebeu cerca de cem euros de dívida em cinco prestações. Embora a empresa ficasse em caminho, no regresso a casa, obrigava a um desvio de vários quilómetros por estradas secundárias. E em metade das deslocações não teve resultados.
Conto este episódio para deixar aqui um exemplo do que é gerir uma empresa de comunicação social, e não me alongo mais porque esta matéria é mais assunto de caserna do que de discussão pública. Conto o episódio para justificar a crónica sobre dois livros em que o autor é um açoriano chamado Onésimo Teotónio Almeida (OTA), professor universitário há meio século nos EUA e um ensaísta e cronista como não há outro em Portugal. Durante muitos anos enviámos-lhe o jornal e alguns livros que fomos publicando. Depois, nem sei porquê, o jornal deixou de atravessar o Atlântico e o mesmo aconteceu com os livros. Mas mantive-me sempre fiel à leitura dos seus livros e às crónicas que vai publicando regularmente, e que não é difícil encontrar por aí tendo em conta que os meios para o fazer são, a cada ano, mais raros e com menos páginas. Dedicar-lhe esta coluna é uma honra mais para mim do que para ele e para os seus livros. O espaço desta coluna que estava guardado para contar a história do Diogo e da sua persistência como elemento da equipa de gestão comercial fica para outra altura. Provavelmente, se tivesse que dar contas a alguém não me estava a explicar. Quem acha que conhece o ser humano nunca soube que “acossado pelo terror estalinista, Bakhtin arrancou as folhas do livro de estética que escrevera para remediar a terrível falta de papel de enrolar cigarros”.
O título desta crónica foi roubado de um texto que OTA escreveu como prefácio a um texto de George Steiner, publicado pela Gradiva, que acaba de chegar às livrarias. O livro tem 80 páginas e o ensaio de Steiner, intitulado “O Silêncio dos Livros”, ocupa menos de metade do livro. Steiner é um dos meus autores preferidos, mas só comprei o livrinho depois de ler duas vezes o prefácio de OTA e de dizer para com os meus botões: vou levar o livro, o texto do prefácio merece os 11 euros.
Na terceira leitura, já em casa, com uma caneta em mãos assinalei as partes do texto que mais gostei. E de seguida li Steiner, num texto igualmente soberbo sobre livros, em que a certa altura conta que “na agonia, Balzac chamava pelos médicos que tinha inventado na Comédia Humana”, e que, “segundo Shelley, um homem verdadeiramente apaixonado pela Antígona de Sófocles jamais poderia viver uma experiência semelhante com uma mulher real”, e ainda que “Flaubert sentia-se rebentar como um cão enquanto “a puta da Bovary” se preparava para viver eternamente”.
George Steiner morreu a 3 de Fevereiro de 2020 e parece que foi no mês passado. A morte dos que admiramos, mas vivem distantes do nosso afecto, não conhece limites temporais. Para mim ele morreu ontem; se estiver distraído a lê-lo é bem possível que acredite que ainda é vivo e até o confunda com outro ensaísta que me fala igualmente das palavras de Joyce: “Esmaguem-nos, que nós somos como as azeitonas”, ou ainda do facto de “Varsóvia a Buenos Aires haver tanta publicidade a elogiar panfletos em que se nega a existência dos campos de morte nazis, panfletos a que é fácil deitar a mão”, que o leva a perguntar se “não será esta uma boa razão para haver censura”.
Não é de George Steiner que quero escrever, mas de Onésimo Teotónio Almeida que editou também recentemente um livro imperdível para quem gosta de literatura portuguesa e se interessa por textos “cuja unidade consiste no entabulamento de conversas em linguagem clara e distinta com autores tutelares da cultura portuguesa do século XX, que falam de Natália Correia, Fernando Pessoa, José Saramago, José Rodrigues Miguéis e Jorge de Sena, só para citar alguns que o escriba também mais aprecia.
“Diálogos Lusitanos”, assim se intitula mais um volume de ensaios de OTA, tem um texto reproduzido em parte na contracapa que fala de outros títulos mais antigos, em que o autor afirma ter “tentado contribuir para o que até aqui me parece ser um diálogo de surdos em que cada um fala e ninguém responde, nem sequer simplesmente fazendo um eco”, numa clara alusão ao pobre meio literário e cultural português. JAE.
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