“Os jovens hoje não sabem correr”
Sérgio Santos é um homem dedicado ao desporto que orientou grandes figuras do triatlo nacional
Foi treinador de Vanessa Fernandes, João Pereira ou João Silva, grandes figuras do triatlo nacional e mundial, até aceitar o desafio de trabalhar na empresa municipal DESMOR, em Rio Maior. Nessa cidade, Sérgio Santos assentou arraiais e criou recentemente a sua própria empresa, dedicada ao treino desportivo e não só.
Qual é a receita para se fabricar um campeão?
A primeira tem a ver com o trabalho, não só do atleta mas de todas as pessoas envolvidas no processo. Sabemos que o talento é decisivo, mas também sabemos que nos desportos de resistência, cada vez mais, o trabalho é que é o factor diferenciador.
E a capacidade de sofrimento?
O desporto é um processo voluntário e sofrimento não me parece uma palavra adequada. Seja como for, tem que haver muito trabalho, muita dedicação e persistência. É isso que faz a grande diferença a nível dos resultados, nomeadamente nos desportos de resistência.
Tem fama de espremer os seus atletas até ao tutano. Sem um bom treinador não há bons resultados?
Posso dizer que sou relativamente exigente mas também adapto esse grau de exigência aos atletas que treino. A minha bitola é aquilo que é necessário para se ser o melhor do mundo. O grau de exigência é inevitável se se quer estar ao nível dos melhores.
Já desencorajou algum atleta por perceber que nunca iria longe na alta competição?
Não desencorajei mas já fui suficientemente honesto para conseguir dizer a um atleta que devia realinhar os seus objectivos ou devia apontar para outro tipo de realidade desportiva. Os treinadores têm a obrigação de ser honestos.
E não criarem falsas expectativas...
Temos que fazer corresponder aquilo que é o trabalho que fazemos, os resultados obtidos, ao nosso discurso. E se percebemos que um atleta está com expectativas demasiado elevadas, temos de conseguir dizer-lhe até onde é que consideramos que ele pode chegar.
Neste momento temos atletas com condições para lutar por uma medalha olímpica no triatlo?
Temos claramente pelo menos dois rapazes com larga experiência, o João Pereira e o João Silva, que não sendo favoritos são mesmo assim atletas que num dia especial podem ir ao pódio nos Jogos Olímpicos. Eles sabem disso.
Há no Ribatejo diversos clubes de triatlo que têm alcançado resultados importantes. Qual a razão para a popularidade dessa modalidade que envolve três desportos (corrida, natação e ciclismo)?
Tem muito a ver com as pessoas dispostas a dinamizar projectos. E aqui no Ribatejo foi acontecendo. O facto do António Jordan ter vindo para Almeirim e Alpiarça, o facto de aqui em Rio Maior o Duarte Marques ter ido aos Jogos Olímpicos e depois nós fazermos uma aposta clara em projectos de triatlo, tudo isso contribuiu. Houve muitas pessoas que se dedicaram ao triatlo e foram determinantes para que isso acontecesse.
Há actualmente muitos jovens valores nesta região a competir em triatlo. Acompanha o seu trabalho?
Vou acompanhando à distância, estamos atentos.
Há algum que se destaque?
Há sempre alguns miúdos que se destacam. Temos agora aqui em Rio Maior o jovem (Alexandre Montez) que alcançou a medalha de prata nas Olimpíadas da Juventude, há uns miúdos em Torres Novas que têm alcançado bons resultados tanto a nível nacional como internacional no escalão deles, no Cartaxo há alguns que vão aparecendo também. No entanto, continuo a dizer que o processo de formação de um atleta é de tal forma longo no triatlo que tudo aquilo que alcançam quando são jovens é importante, mas não é o mais importante. É importante, sim, pelo desenvolvimento juvenil, mais do ponto de vista até da formação desportiva. Depois, se como consequência há resultados de alto rendimento ou não, isso já são outros factores que intervêm.
Os jovens de hoje têm a mesma capacidade de resistência que tinham há gerações atrás?
São características completamente diferentes. Neste momento existem indicadores preocupantes. Um deles tem a ver com a corrida. A corrida era algo de natural. O recreio na escola era passado a correr atrás da bola, a jogar à apanhada, eram jogos que nos obrigavam a movimentar muito. Correr fazia parte da nossa aprendizagem e toda a gente sabia correr.
Isso hoje não acontece?
Os jovens hoje não sabem correr. Veja-se no recreio, se tiverem que correr de um lado para o outro. Os jovens hoje conseguiram desenvolver outro tipo de destrezas, que são as teclas, os videojogos, as redes sociais e passam os intervalos parados… O perfil das pessoas mudou muito e estão menos aptas a desenvolver seja qual for o esforço físico.
Foi director técnico da empresa municipal DESMOR, que gere o complexo desportivo de Rio Maior, e entretanto estabeleceu-se como empresário na área do treino de alto rendimento. Em que consiste o seu negócio?
A Ontrisports dedica-se ao apoio a atletas e treinadores de todos os níveis. Estamos fundamentalmente orientados para a natação, ciclismo e corrida, mas temos também a capacidade de nos adaptarmos e conseguirmos trabalhar com todas as modalidades. Estamos aliás a começar um projecto-piloto de apoio à condição física e preparação física do basquetebol. Fazemos também avaliações de atletas seja do ponto de vista metabólico, seja da biomecânica, com vista a aprimorar o apoio ao treino. Também temos o serviço de planeamento do treino, desde o alto rendimento aos atletas amadores.
A Escola Superior de Desporto de Rio Maior é uma boa fonte de recrutamento de pessoal?
Lecciono lá há alguns anos e não tenho dúvidas de que é uma mais valia aqui da região. Porque traz muita gente ligada ao desporto, tem instalações de excelência e uma boa base de recrutamento. Neste momento temos dois jovens a colaborar na empresa que se formaram lá.
O sossego, os excessos das tasquinhas e a falta de capacidade hoteleira que tolhe o desenvolvimento
O complexo desportivo de Rio Maior é o resultado de uma estratégia política que vem sendo seguida há vários anos. É um exemplo a seguir por outros municípios?
Todos os municípios que desejem implantar-se a nível do desporto devem passar por Rio Maior para perceberem o que esteve na origem deste projecto. As coisas foram muito bem idealizadas e há que continuar a desenvolvê-las e aprimorá-las. Rio Maior é uma referência mas é preciso mais capacidade hoteleira.
Essa é uma lacuna reconhecida na cidade.
A capacidade hoteleira é demasiado reduzida. Tem que aparecer algo diferenciador que faça com que a estrutura aqui existente seja apoiada ao nível do número de camas. Se quisermos organizar uma competição de grandes dimensões aqui em Rio Maior não conseguimos. As pessoas têm que ir dormir a Caldas da Rainha, Leiria ou Santarém.
Criou a sua empresa em Rio Maior e é aqui que reside. Quais as razões para essa opção?
Existem várias. Uma delas tem a ver com o facto de haver condições a nível de complexo desportivo óptimas para a prática do triatlo. Sempre o disse, mesmo antes de saber que um dia viria trabalhar em Rio Maior. Desde 2001 que trago selecções nacionais e equipas a treinar a Rio Maior. A distância para Lisboa é óptima. A qualquer momento vamos a Lisboa mas também estamos suficientemente afastados para fugir daquilo que é o trânsito e os perigos do treino do ciclismo. A piscina tem a qualidade que se reconhece e há também bons trilhos para correr.
E aproveitando também as instalações existentes, nomeadamente o centro de estágios.
A nossa intenção, apesar de não estarmos a trabalhar directamente para a DESMOR, é continuar a trazer equipas para fazer estágios e a sua preparação em Rio Maior, onde existem todas as condições.
Está satisfeito com a opção tomada de residir em Rio Maior?
Claro que estou. Se não estivesse já tinha mudado. Gosto muito de estar onde sinto que as pessoas que estão comigo se sentem bem.
Já se sente da terra?
Sim, perfeitamente. Apesar de ter uma costela de emigrante. Primeiro, porque metade do ano tenho que viajar, trabalhar no estrangeiro, em competições, estágios, reuniões. E também porque acredito que temos de ter a capacidade de nos movimentarmos conforme aquilo que é a nossa actividade profissional. Não nos podemos acomodar.
Do que gosta mais em Rio Maior?
Gosto muito do sossego. Não gosto de viver em cidades grandes. E gosto que exista segurança e muito boas condições para aquilo que é o treino outdoor. Quando vim para Rio Maior havia uma pessoa que praticava triatlo de forma assídua, que era o Duarte Marques. Agora, se contabilizarmos o número de pessoas e de treinadores, verificamos que houve um boom da modalidade.
Neste momento serão mais os praticantes de triatlo do que de marcha, que foi o desporto que deu fama a Rio Maior?
E continua a dar! A marcha tem, na minha opinião, uma perspectiva de muito menos envolvimento de massas do que o triatlo. Não vejo com facilidade que existam 200 ou 300 provas a nível mundial com três mil ou quatro mil praticantes, como acontece no triatlo. A marcha tem tido aqui o sucesso que tem porque obtém resultados, mas nunca será um desporto de massas.
É frequentador das Tasquinhas de Rio Maior, que estão aí a chegar?
Em termos de gastronomia sou um aficionado. Gosto da gastronomia também na perspectiva de fazer. Quanto às Tasquinhas, penso que tem uma parte extremamente positiva e uma parte extremamente negativa. A parte positiva tem a ver com aquilo que é mostrar a comida regional, a tradição, o que de melhor cá se faz. O aspecto negativo tem a ver com várias questões que foram crescendo em torno das tasquinhas.
Nomeadamente?
Aquilo que era uma mostra regional passou a ser local de determinados excessos também. Diria até de perturbação para quem vive no centro da cidade, com excesso de ruído que, por exemplo, não é compatível com aquilo que é o centro de estágio. As pessoas que o frequentam procuram descansar para estarem óptimos no dia a seguir para treinar. Quando acontecem as Tasquinhas já sabemos que isso não é possível.
Atleta, treinador, professor e empresário
Sérgio Figueiredo dos Santos nasceu em Paris (França) em 24 de Dezembro de 1969, filho de um casal de emigrantes. Aos 16 anos regressou com os pais a Portugal, indo viver para Vendas Novas. É licenciado em Educação Física e Desporto pela Faculdade de Motricidade Humana, em Lisboa, onde tirou também o mestrado em Treino de Alto Rendimento. Possui ainda o Curso de Treinador Superior de Triatlo (Nível III) realizado em Madrid.
Foi Director Técnico Nacional da Selecção de Portugal de Triatlo entre 2000 e 2010, tendo treinado alguns dos melhores triatletas mundiais, como foi o caso de Vanessa Fernandes, medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Pequim, e de João Silva, Bruno Pais ou João Pereira, entre outros atletas pertencentes à selecção portuguesa.
Em Outubro de 2010 assumiu funções como director técnico da empresa municipal DESMOR, que gere o complexo desportivo de Rio Maior. Teve responsabilidades no desenvolvimento e rentabilização das infraestruturas consideradas das melhores de Portugal.
Em Setembro de 2018 deixou a DESMOR e entregou-se de corpo e alma à sua empresa, a Ontrisports, com sede em Rio Maior, cidade onde reside há quase nove anos. É casado com Anabela Santos, seu braço direito na gestão e administração da empresa, e pai de dois filhos, Tomás e Vasco, que praticam basquetebol. Sérgio Santos dá também aulas há alguns anos na Escola Superior de Desporto de Rio Maior.
Antes de se dedicar ao triatlo, Sérgio Santos praticou tiro com arco no Sporting e foi director técnico da Federação Portuguesa de Tiro com Arco e treinador de basquetebol. O primeiro contacto com o triatlo foi na faculdade, quando conheceu António Jordan, praticante e antigo seleccionar português de triatlo entretanto falecido. Foi também praticante da modalidade.
Sérgio Santos foi eleito Treinador do Ano em 2006 na Gala do Desporto da Confederação do Desporto de Portugal e recebeu por duas vezes o prémio “Percurso Profissional” da Faculdade de Motricidade Humana em 2007 e 2009.