Ainda se morre muito em consequência de acidentes de trabalho
Maioria das queixas à ACT não é sobre segurança mas sobre horários, férias e subsídios
A Segurança no trabalho tem vindo a aumentar de ano para ano embora ainda haja entidades patronais que não dão a devida atenção ao assunto e os trabalhadores façam o mesmo, preferindo-se queixar à Autoridade para as Condições do Trabalho de questões relacionadas com remunerações, férias, horários e subsídios. Em 2018, em todo o país, registaram-se 337 acidentes de trabalho graves e 131 acidentes mortais. Na região foram 15 graves e seis mortais. As estatísticas não dizem nada sobre os dramas de quem sofre um acidente de trabalho. Um acidente grave corresponde muitas vezes a outro tipo de morte, como contamos nesta reportagem a propósito de um caso passado há 31 anos.
Um trabalhador jovem e ágil que a falta de segurança atirou para uma cadeira de rodas
Benjamim Ferreira ficou paraplégico aos 36 anos depois de um acidente de trabalho
Benjamim Ferreira tinha 36 anos quando sofreu um acidente que o deixou paraplégico. Na fábrica Metal Portuguesa, onde trabalhava, em Castanheira do Ribatejo, subiu, sem qualquer tipo de segurança ou protecção, a uma altura de três metros para arranjar uma máquina e caiu, estando desde esse dia, já lá vão trinta e um anos, preso a uma cadeira de rodas.
“Estava em cima de uma trave, escorreguei e caí para dentro de um silo. Não estava seguro a nada e não tinha qualquer protecção. Perdi os sentidos e, quando acordei lembro-me de ter tentado mover as pernas e não conseguir. Nesse dia, 11 de Março de 1988, nem era para ter ido trabalhar. Foi a última vez que caminhei pelo meu próprio pé”, conta.
Naquela altura, a prevenção e segurança no trabalho não era o que é hoje. “Subia-se e descia-se sem recurso a andaimes, sem coletes ou capacetes. Os trabalhadores trepavam para cima de vigas à pressa, porque as máquinas não podiam parar. Se tivessem uma avaria tinham de ser arranjadas. Não havia tempo a perder com a segurança, e é por isso que estou numa cadeira de rodas”, diz.
Benjamim Ferreira foi hospitalizado em Vila Franca de Xira e, mais tarde, transferido para o Hospital Santa Maria, onde foi operado à coluna e permaneceu três meses. Nunca lhe foi dito pelos médicos que não voltaria a andar, e ele refugiou-se nessa esperança. “Ainda hoje a trago comigo, mas foi perdendo força”, confessa.
Seguiu-se o período de adaptação, em Alcoitão, onde começou a luta para aprender as técnicas de quem tem de se mover sentado numa cadeira de rodas. Aprendeu a entrar e sair de uma viatura adaptada, a fazer a sua higiene pessoal e outras tarefas que antes eram tão simples e depois tão complicadas. “Foi aí que tive o choque, de que a minha vida ia mudar para sempre”.
Regressou à sua habitação em Castanheira do Ribatejo, derrotado. “Da cintura para baixo deixei de ser eu. A minha vida deu um trambolhão tão grande que reduziu para vinte por cento a minha autonomia”.
Para agravar a situação a mulher deixou-o e com ela foram as filhas do casal. Lamenta não ter conseguido acompanhar mais o crescimento das duas filhas e actualmente conta apenas com um cão, chamado Malato, que o acompanha no trajecto entre casa e o quartel dos bombeiros locais, onde é presidente da Assembleia Geral.
Antes do acidente, Benjamim Ferreira era chefe de manutenção e estava segundo conta, “a dias de subir na carreira”. Regressou à fábrica depois do acidente e continuou a trabalhar noutras funções, mas com outro estado de espírito, apesar do apoio que teve.
“Fiquei a supervisionar o trabalho dos funcionários e a preparar as equipas que faziam reparações. Na fábrica foram criadas todas as condições de acessibilidade para que eu pudesse circular e anos depois assisti à sucessiva implementação de medidas de prevenção e segurança”. A sua situação mudou quando foi obrigado a deixar o trabalho, depois de uma acção de despedimento colectivo, em 2010. Nunca mais arranjou outro emprego.
A seguradora continua a financiar-lhe todas as despesas hospitalares e as diferentes cadeiras pelas quais já passou. Porém ficaram por fazer as alterações à habitação, que Benjamim reclamou e pelas quais espera há 15 anos. “Avaliaram a situação, e nunca mais cá apareceram”, lamenta, explicando que essa falha mexe diariamente com a sua vida. “Nem a casa-de-banho está adaptada. Tenho de me sentar na cadeira manual e saltar para uma trave que tenho na banheira”, conta, firmando que “o seguro devia contribuir para o bem-estar total”.
“Estamos a viver grandes mudanças no mundo do trabalho”
Entrevista com Teresa Cardoso, do Centro Local de Santarém da Autoridade para as Condições de Trabalho
A expressão popular “o trabalho dá saúde” é contrariada pelo relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) publicado a 28 de Abril, no âmbito das celebrações do Dia Mundial da Prevenção e Segurança no Trabalho. Todos os anos morrem 2,4 milhões de pessoas por doenças relacionadas com o trabalho e 374 milhões sofrem acidentes de trabalho.
Em 2018, no distrito de Santarém aconteceram 15 acidentes graves e seis acidentes mortais. Os dados são do Centro Local de Santarém e da Unidade de Apoio de Tomar, que juntos têm jurisdição sobre todo o distrito de Santarém à excepção do concelho de Mação, que pertence ao Centro Local de Castelo Branco.
Teresa Cardoso, à frente do Centro Local de Santarém da Autoridade para as Condições do Trabalho refere que “ainda se morre muito a trabalhar e por causa do trabalho”. No Centro Local de Santarém da ACT fazem-se os relatórios de todos os acidentes de trabalho mortais ou particularmente graves e o volume de trabalho tem crescido porque actualmente também os tribunais judiciais pedem relatórios de inquérito da ACT, que antigamente eram solicitados apenas pelos tribunais de trabalho.
“O tribunal judicial não estava ainda muito familiarizado com as questões da segurança no trabalho, porque não eram questões trabalhadas em sede de crime”. Antigamente o acidente era investigado pela ACT, era enviado o relatório para o tribunal de trabalho que decidia de quem seria a culpa do acidente e se podia ser responsabilizada a companhia de seguros ou não. E, se não houvesse seguro de acidentes de trabalho, até que ponto é que o empregador seria responsabilizado, ou se havia negligência do trabalhador. Hoje é diferente”, conta a responsável pelo em Centro Local de Santarém da ACT, acrescentando que hoje em dia os tribunais estão mais alerta, sobretudo no caso dos acidentes mortais ou que deixem a pessoa incapacitada, o que é bom para a ACT para que haja uma consciencialização e uma maior cultura de prevenção. Por outro lado, esta solicitação representa uma carga de trabalho acrescida para a instituição que tem recursos escassos.
“Quando entrei, em 2010, havia 14 inspectores, hoje são apenas cinco. Temos dois concursos a decorrer, um deles praticamente terminado e vamos receber nove inspectores. São bons reforços, mas não resolvem, por exemplo, a falta de técnicos de prevenção de segurança e saúde no trabalho, que permitiriam realizar mais acções de sensibilização”, refere a responsável pela ACT de Santarém.
Teresa Cardoso revelou a O MIRANTE as dificuldades do momento charneira que se está a viver, onde o próprio conceito de trabalho está em mudança, fruto das novas plataformas digitais, dos problemas da demografia, do envelhecimento da população e até das alterações climáticas. Novos desafios se colocam a empregados, empregadores e aos inspectores do trabalho e é sobre estas questões actuais que se debruça o relatório da OIT, que este ano assinala o seu centenário, “Segurança e Saúde no coração do Futuro do Trabalho: construir sobre 100 anos de experiência”.
Para Teresa Cardoso há que parar um pouco e reflectir este momento de mudança do próprio conceito de trabalho e as implicações que tem a nível pessoal, uma vez que o trabalho ocupa cada vez mais tempo na vida de cada um. Para os inspectores do trabalho, em particular, levantam-se questões novas.
“Como pode a ACT actuar numa situação em que não há um empregador com cara, como por exemplo a Uber? Vamos bater à porta de quem? Vamos falar com quem? Muitas vezes não há uma estrutura física. O que se faz?”, questiona, referindo-se também às questões da flexibilização e do teletrabalho. São questões que implicam novas metodologias que ainda não estão definidas na lei.
“Empregador e trabalhador são actores no mesmo palco”
A maior parte dos incumprimentos de regras de segurança partem do empregador. Quer por não fornecer equipamentos de protecção, quer por não dar a formação adequada. “Não é propriamente ao trabalhador que cabe andar à procura de máscaras e de botas de biqueira de aço”, diz-nos Teresa Cardoso.
Mas o empregador para saber o que falta em termos de segurança tem que avaliar os riscos profissionais. Contratar um profissional que vá aos locais de trabalho e que, posto a posto, trabalhador a trabalhador, tarefa a tarefa, avalie os riscos e as necessidades. Esse técnico de segurança é que vai propor os equipamentos de protecção individual, a formação e os equipamentos colectivos necessários. Depois é preciso responsabilizar os trabalhadores pelo uso correcto das suas protecções.
No entanto, nem tudo é culpa do empregador, “de acordo com a lei, a responsabilidade pela segurança é do empregador mas o trabalhador não se pode demitir dos seus deveres. São ambos actores no mesmo palco”, conclui.
Dinheiro é mais importante que segurança
Questões socio-laborais como horários, remuneração, férias e subsídios são queixas mais frequentes do que as de falta de condições de segurança no local de trabalho. De acordo com a presidente do Centro Local de Santarém da Autoridade para as Condições do Trabalho, ainda aflige mais os trabalhadores “a questão do bolso” do que propriamente a questão da segurança no local de trabalho.