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“Felicidade foi conseguir ler a placa com o nome da terra por onde passava diariamente”
Cláudia Branco, técnica do centro Qualifica de Ourém é uma das responsáveis pela solução encontrada para o regresso à escola de Maria e Paula

“Felicidade foi conseguir ler a placa com o nome da terra por onde passava diariamente”

Irmãs com mais de 40 anos voltaram à escola porque exigiram habilitações a uma delas. Não quiseram o nome no jornal mas é provável que essa vergonha desapareça em pouco tempo. As duas irmãs da Freixianda, Ourém, que voltaram à escola trinta anos depois de lá saírem sem saber quase nada, já devem conseguir ler esta reportagem. Menos sorte tem o rapaz de vinte anos que assina com uma impressão digital. O Centro Qualifica de Vila Franca de Xira só tem dez interessados em aprender a ler e a burocracia do Estado exige um mínimo de vinte e seis, para autorizar a formação de uma turma. Em Portugal há meio milhão de pessoas que não sabem ler ou escrever, 119 mil das quais em idade activa. A oferta para aprendizagem é quase inexistente.

Depois de andarem na escola até aos 14 anos sem aprender mais do que o a,e,i,o,u, as irmãs Maria e Paula (nomes fictícios), convenceram-se que não tinham cabeça para estudar. Hoje, com 47 e 44 anos, respectivamente, voltaram à escola e este ano lectivo vão para o 3º ano. As duas têm frequentado as aulas na Escola EB 2,3 da Freixianda, concelho de Ourém.
Maria é casada e tem uma filha de 21 anos. Sempre que a filha precisava de ajuda para os estudos pedia-lhe que fosse ter com o pai. Paula é solteira e não tem filhos, voltou à escola por insistência da irmã. Recordando o passado, as duas concluem que talvez o problema do seu fracasso escolar fosse a professora. “Inclinava-se para os que sabiam mais e não puxou por nós”, diz Maria, falando também em nome da irmã mais nova.
Durante toda a vida, quando era preciso assinar algum documento, tinham que ter confiança na pessoa que o lia e usavam o nome que, a custo, tinham aprendido a desenhar. Com os números dizem não ter tanta dificuldade.
Têm aulas às segundas e terças-feiras e já lêem bem palavras simples. Nas mais complexas ainda sentem dificuldades. Maria lembra que a primeira palavra que conseguiu ler foi Camarões, nome de uma pequena localidade da freguesia de Freixianda. “Passava pela placa e não ligava, até ao dia em que olhei para ela e a consegui ler. Foi uma felicidade”, conta.
A primeira palavra que Paula se recorda de ter conseguido ler foi Rui. Um contacto de trabalho a quem teve que telefonar e conseguiu identificar o nome na agenda.
Maria, a mais velha, trabalha numa serração local. Paula também lá trabalhou mas um problema na coluna levou-a a reformar-se por invalidez há cerca de três anos. Dizem que, em casa, dedicam no máximo uma hora por semana aos estudos. Paula não tem grande motivação e Maria confessa que depois de um dia de trabalho só lhe apetece descansar. Nem liga a televisão, para não adormecer no sofá, preferindo ouvir rádio.
Ao fim-de-semana, quando tem mais tempo, gosta de ver um filme e fica contente por já conseguir ler algumas palavras nas legendas, mas admite que ainda perde muita coisa. “O meu marido chama-me burra. Sei que não o diz por maldade, mas mesmo assim custa ouvir”, lamenta.
Livre da obrigação do trabalho, Paula gosta de ler romances, mas o esforço da leitura cansa-a e a maior parte das vezes opta pela satisfação imediata das novelas na televisão.
A mãe dizia que não aprendiam porque não queriam, porque nunca lhes faltou com nada. No total eram nove irmãos. Dois rapazes e sete raparigas. Apenas quatro concluíram a antiga 4ª classe.

Nem sempre a educação foi valorizada
Cláudia Branco, técnica do centro Qualifica de Ourém e uma das responsáveis pela solução encontrada para que Maria e Paula regressassem à escola, diz que na idade adulta é preciso muita força de vontade para aprender.
Essa força surgiu a Maria na altura em que lhe exigiram o diploma da 4ª classe para poder aceder a uma formação no trabalho. “Não o tinha, fiquei danada e assim que cheguei a casa tratei de saber como o poderia obter. Encaminharam-me para o Centro Qualifica”, conta.
Cláudia Branco refere que ainda é comum aparecerem pessoas em idade activa na mesma situação das duas irmãs porque há algumas décadas a educação não era muito valorizada, dando-se mais importância ao saber fazer, ao aprender uma profissão.
“Muitas vezes é o sentimento de vergonha de quem chega à idade adulta sem saber ler e escrever que acaba por levar essas pessoas a procurar ajuda. Algumas culpabilizam-se por isso e têm até um certo desgosto. Em Fátima temos duas ou três pessoas na mesma situação de Maria e Paula”.
As aulas na escola de Freixianda são dadas por professores que se disponibilizaram a fazê-lo e este ano ainda esperam a atribuição de horário. Cláudia diz que não existe uma resposta formal porque os cursos de Competências Básicas têm que ter um número mínimo de inscritos (ver caixa).
“Com a boa vontade da escola conseguimos”, diz, reforçando a dificuldade acrescida de ensinar adultos. “São pessoas que já têm uma vivência, têm competências de vida, não são tábuas rasas. Normalmente também trabalham e têm o obstáculo do cansaço”. Como aspecto positivo realça que são elas próprias a procurar a escola e que vêm porque têm vontade de aprender e não por obrigação.

Centros Qualifica sem cursos de Competências Básicas

Da mais de dezena e meia de Centros Qualifica da região contactados por O MIRANTE, grande parte respondeu que não tem qualquer curso de Competências Básicas. Entre os que responderam afirmativamente contam-se Torres Novas (Competir), Cartaxo (Agrupamento de Escolas Marcelino Mesquita) e Ourém.
Em Rio Maior, Aida Garcia, coordenadora do Centro Qualifica da Escola Secundária Dr. Augusto Ferreira, refere que no ano passado esteve em funcionamento uma turma de 19 adultos sem competências de leitura e escrita, com uma média de idades a rondar os 45 anos. “Foi a resposta da escola à necessidade detectada pelo Centro Qualifica”. Para este ano não está prevista a criação de nenhuma turma.

Saber ler e escrever é uma questão de cidadania, defende Maria da Conceição Leitão

Exigência de um mínimo de alunos impede pessoas de aprender a ler e escrever

Em Vila Franca de Xira há mais de uma dezena de pessoas que querem aprender a ler e a escrever mas que estão impedidas de o fazer por causa de uma norma que exige um mínimo de 26 alunos para a formação de uma turma para alfabetização.
Há cinco anos que o Centro Qualifica da Secundária Alves Redol tenta formar uma turma com o número mínimo de alunos exigido pela Agência Nacional para a Qualificação e à medida que o tempo passa os interessados desmotivam-se.
Maria da Conceição Leitão, coordenadora do centro, contesta a exigência que é feita. “Alfabetizar adultos não é o mesmo que alfabetizar crianças. Estamos a falar de questões cognitivas. Um grupo de 10 ou 12 pessoas já seria excelente e conseguiríamos obter resultados ao fim de algum tempo”, refere.
Para tentar dar resposta à exigência o Centro Qualifica da Secundária Alves Redol estabeleceu uma parceria com o Centro Comunitário de Povos visando chegar a uma maior fatia da comunidade e assim captar alunos suficientes para organizar uma turma.
O número de pessoas pouco escolarizadas é residual e a maioria delas estão na faixa etária entre os 40 e os 60 anos, diz a coordenadora, notando que muitas vezes a maioria até obteve o certificado de frequência do primeiro ou segundo ciclo mas que, por não usar as competências adquiridas no dia-a-dia, acabou por perder a capacidade de ler e escrever. Na lista há o caso de um rapaz de 20 anos que não sabe ler nem sequer assinar o seu próprio nome. A sua ficha de inscrição foi marcada apenas com a impressão digital.
“A alfabetização é fundamental. Todo o cidadão tem direito a saber ler e escrever. Numa sociedade cada vez mais digital se não se detém as competências básicas da leitura e da escrita não se poderá avançar para um patamar de maior exigência. Saber ler e escrever é no mínimo uma questão de cidadania”, defende.

“Felicidade foi conseguir ler a placa com o nome da terra por onde passava diariamente”

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