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O problema da saúde não é dinheiro mas desorganização e falta de incentivos
José Germano de Sousa é fundador, presidente e director clínico do centro laboratorial com o seu nome

O problema da saúde não é dinheiro mas desorganização e falta de incentivos

Bastonário da Ordem dos Médicos entre 1999 e 2005 e fundador, presidente e director clínico de um centro de excelência laboratorial, José Germano de Sousa entende que o Estado só tem a ganhar se trabalhar com o privado no objectivo comum de melhorar a assistência à população. Nesta entrevista, o patologista diz que o sistema de saúde sofre de desorganização, que há poderes instalados e um ataque aos privados que gerem bem os serviços públicos, porque interessa esconder o que está mal. Defende que os médicos devem ganhar em função do que trabalham e que este modelo traria mais benefícios para as pessoas. Considera que não há falta de médicos, mas de incentivos para os fixar nas zonas desfavorecidas. O Grupo Germano de Sousa está presente com uma forte rede de laboratórios e postos de recolha no distrito de Santarém, que foi reforçada com duas novas unidades em Santarém e Rio Maior.

Concorda com as parcerias público-privadas na saúde como acontece com o Hospital Vila Franca de Xira?

Apesar das aleivosias que se têm dito, o Hospital Vila Franca de Xira funciona muito bem. Desde o princípio que o hospital não tinha capacidade para servir a população e aproveitaram-se uns espaços que eram para refeitórios, mas que nunca funcionaram como tal, para criar enfermarias para doentes que estavam à espera de alta. Alguém, por razões ideológicas, fabricou uma notícia a dizer que o hospital colocava doentes nos refeitórios.

As ideologias políticas contra as parcerias público-privadas prejudicam a população?

Neste aspecto prejudicam. Os partidos devem fazer a sua política, mas em saúde deviam deixar de lado a ideologia e olhar para o interesse do país. Há um estudo, que não foi contestado, que diz que estas parcerias pouparam por ano ao Estado, em condições idênticas com o sector totalmente público, 40 milhões de euros.

Porque é que a gestão dos serviços públicos por privados assusta alguns?

Ideologias, mitos! Mas também os poderes, muitos poderes. Se algo funciona bem começa a colocar em causa o que não funciona.

No caso dos exames clínicos qual é a vantagem de o Estado ter acordos com privados?

As convenções para se fazerem exames, na década de 80, surgiram porque não havia condições no Estado. Aquilo que nos pagam pelo que fazemos custa menos 20 por cento do que feito directamente pelo serviço público. Agora nos contratos que temos com o Estado, há plafonds anuais e não nos pagam se ultrapassarmos o valor definido, que é de 170 milhões. O Estado não gasta mais um cêntimo. Qualquer governante não consegue manter esta rigidez dentro do Estado. Só ao nível dos utentes do Serviço Nacional de Saúde há todos os dias 22 mil pessoas que tiram sangue.

A saúde hoje tende a ser mais privada do que pública?

Pertenci ao movimento dos 44, com pessoas de vários quadrantes, que apoiou a Lei de Bases da Saúde proposta por Maria de Belém. Fizemos tudo para que fosse aceite uma lei que permitisse uma ligação harmoniosa entre o público, o privado e o social, de modo a que a população fosse melhor servida, mas isso não aconteceu.

Porque é que nos hospitais públicos há tantos problemas financeiros?

A gestão é muito complicada, porque os gestores públicos na saúde têm de seguir regras difíceis, numa burocracia em que muito se perde. Conto um caso que se passou comigo quando fui convidado para montar o serviço de patologia clínica no novo Hospital Amadora-Sintra. Implementou-se uma modalidade completamente diferente em que os médicos e os técnicos fizeram uma sociedade e prestavam serviços como unidade independente. Foi sempre o serviço mais barato dos hospitais. O custo médio das análises apresentou sempre os melhores índices. Gastávamos metade do que gastava o Hospital de Santa Maria.

O SNS, a ADSE e a fixação de médicos na província

Quem recorre ao Serviço Nacional de Saúde deve pagar taxas em função dos seus rendimentos?

O SNS é baseado na solidariedade. Quem mais pode paga por quem não tem posses. As pessoas já pagam impostos em função do que ganham para ajudarem quem não tem recursos. E todos devem ter as mesmas condições de acesso, independentemente de quem sustenta o sistema. Alterar isso é destruir o Serviço Nacional de Saúde.

Faz sentido continuar a existir um sistema paralelo como a ADSE?

É um sistema criado e sustentado pelos próprios. O Estado deve 180 milhões de euros à ADSE, que é um sistema óptimo, que precisa de ser alargado para se sustentar. Se a ADSE falir entram um milhão e duzentas mil pessoas para o Serviço Nacional de Saúde, que assim entra em colapso. Mas ninguém pensa nisto.

A dificuldade de fixar médicos na província é mesmo por falta de profissionais?

A seguir ao 25 de Abril houve um grande crescimento da formação de médicos, que foram para a periferia. Isso levou aos “numeros clausus” e houve anos em que se produziu uma centena de médicos. Neste momento estamos a produzir na ordem dos dois mil médicos, mas os serviços de saúde não têm capacidade para os especializar.

Porque é que não se convencem os médicos a irem para os locais desfavorecidos?

Temos cerca de 40 mil médicos. Não há falta de médicos. Mas sabe o que é ser médico numa ilha? Os médicos também são humanos. A forma de fixar médicos em sítios menos apetecíveis só pode ocorrer se os médicos fizerem parte de um quadro do Serviço Nacional de Saúde e se forem premiados por irem para esses locais.

Um centro laboratorial de excelência pioneiro na técnica revolucionária de biópsia líquida

O Grupo de medicina laboratorial Germano de Sousa reforçou a sua posição no distrito de Santarém com novos centros em Santarém e Rio Maior. Além disso, conta com vários postos de recolha na região servidos por uma rede de estafetas que transporta as amostras para o laboratório central, em Lisboa. Um edifício moderno, com tecnologia de ponta, onde se estudam as mais variadas doenças, para ajudar os médicos a decidirem os melhores tratamentos. Só na área da hematologia o laboratório central estuda cerca de vinte a vinte e cinco leucemias por semana.
Diariamente quatro dezenas de viaturas transportam amostras da zona sul. Uma logística complexa que garante resultados de excelência, graças à alta especialização dos profissionais do centro de Lisboa. Nos laboratórios de proximidade são feitas as análises mais emergentes. As mais complexas, mais difíceis, são transportadas com temperaturas controladas para o laboratório central. “Entendemos que devemos manter um nível de qualidade altíssimo. Temos uma direcção só para a qualidade, para os processos e para o controlo constante dos procedimentos. Nenhum resultado sai sem ter sido verificado por um médico”, explica José Germano de Sousa, fundador e director clínico do grupo.
No laboratório central há três patologistas só dedicados a estudar a morfologia das células. Num espaço robotizado, com equipamentos que representam investimentos de milhões, faz-se, por exemplo, o estudo genético e o estudo de determinados marcadores especiais. “Na genómica estudamos todos os genomas dos tumores. Por exemplo, não há um tumor do pulmão. Há vários. Genómica é o que é adquirido. Uma alteração, como uma agressão por fumo ou radiações. Temos de perceber que tipo de alteração se deu, é a sua identificação que vai permitir ao médico saber o que fazer”, diz Germano de Sousa.
O centro Germano de Sousa é pioneiro na biópsia líquida, uma técnica que permite aceder ao material genético de um tumor através de uma análise ao sangue, evitando-se as técnicas invasivas de recolha de tecidos, sem retirar um pedaço do tumor para análise. Este é o futuro, salienta com orgulho Germano de Sousa. É a medicina de precisão que já trabalha para confirmar que “para cada doente há um medicamento e que o medicamento não serve para todos”.
O laboratório também faz o estudo de risco. Por exemplo, quinze por cento dos cancros da mama tem origem hereditária. “É possível saber através da mutação dos genes qual é a possibilidade de uma pessoa ter cancro da mama, que também pode afectar os homens, apesar de não ser tão frequente”, explica. Germano de Sousa explica ainda que nas doenças auto-imunes, o centro é considerado de excelência em Imunologia.

Hospitais do distrito de Santarém são um paradigma da política

O distrito de Santarém, com quatro hospitais, é um exemplo de falta de estratégia na saúde?

É o paradigma da política. Há uns anos pediram-me para ajudar a reorganizar os três laboratórios dos hospitais do Médio Tejo criando apenas um para os três hospitais. Quando um presidente de câmara soube que no hospital da sua cidade ia ficar apenas um posto de recolha foi um problema.

Quantos hospitais são necessários para o distrito de Santarém?

Parece-me que o de Santarém, com algumas adaptações e alargamento, mais um na zona norte, seria suficiente.

Andamos há demasiados anos a fazer experiências na saúde?

O problema é que quando mudam os ministros da Saúde, às vezes até do mesmo partido, tudo acaba para começar de novo.

Já sentiu que alguém mandava mesmo na saúde?

O problema são os tipos que ficam, enquanto os ministros passam. Aqueles do tipo: é melhor não mexer em nada.

As agressões a médicos estão relacionadas com a degradação do papel do médico na sociedade?

Estes casos são um reflexo do mal-estar da sociedade portuguesa. As pessoas sentem-se infelizes, revoltadas e foi-lhes dada a ideia de que tudo podem fazer e que saem impunes de tudo o que fizerem.

Mas por outro lado, quando há casos de negligência médica não se passa a imagem de que há punição e moralização do sistema.

Não passa, não! Quando fui bastonário meti na rua um médico pediátrico pedófilo em pouco tempo. Na altura, era em simultâneo o bastonário e presidente do conselho nacional de disciplina. Agora fizeram a separação total de poderes e o bastonário deixou de ter poderes e o sistema amansou. O actual bastonário não tem poder para uma actuação rápida.

Médicos como meros funcionários públicos, cirurgias e desorganização

É do terceiro mundo esperar meses por uma cirurgia?

É inaceitável! Funcionarizou-se o médico e com isto o Estado teve como contrapartida um funcionário público, com horários para cumprir. As coisas atingiram uma rigidez tal que tudo é difícil. Se há uma cirurgia que vai demorar para além do horário de trabalho não se faz a cirurgia.

Mas os médicos também não querem fazer mais horas para poderem ir fazer umas horas no privado.

Quando pagam a um médico, livre de impostos, mil e quinhentos euros por mês, com a preparação que tem, com especialidades complexas, isso estimula alguém? Os médicos não podem ser pagos todos da mesma forma. Quem muito se dedica, quem faz e faz bem tem de ser compensado. Os médicos têm uma avaliação que nem professores nem outros profissionais têm. Fazem exames no internato, depois como assistentes. Conheço quem num serviço faz muitas cirurgias e quem faz metade. No final recebem o mesmo. Os médicos vão para o privado porque têm melhores condições de trabalho.

Há uma saúde para ricos e para pobres?

Ainda não, graças à carolice de alguns profissionais que trabalham no Serviço Nacional de Saúde. Apesar dos tempos de espera quem entra num hospital público é bem tratado. A diferença é que quem não tem dinheiro tem de esperar. Mas do ponto de vista técnico a qualidade é idêntica. Digo-o por experiência própria porque já fui tratado no público e no privado.

Os serviços de saúde fora dos grandes centros ainda deixam a desejar?

Há hospitais com muita qualidade. A questão é que um hospital mais pequeno não tem nem se justifica ter alguns equipamentos, como têm os grandes hospitais.

A grande afluência às urgências hospitalares deve-se às falhas da saúde de base?

A entrada para o sistema de saúde passou a ser pela urgência porque o Serviço Nacional de Saúde está mal organizado. Não é uma questão de dinheiro, é de organização. Criam-se circuitos que não se entendem. A culpa não é dos centros de saúde.

Então o que é que mudava?

Era importante que nos centros de saúde não existissem apenas os médicos de medicina geral e familiar. Um serviço de saúde de base devia ter pelo menos um otorrino, um oftalmologista e um pediatra. Assim evitava-se que a pessoa tivesse que ir para a fila do hospital.

A oftalmologia é hoje, tirando as situações graves tratadas nos hospitais, uma especialidade para quem tem dinheiro para pagar.

Há aqui um buraco no sistema. O atendimento às doenças correntes da vista não deve estar nos hospitais. Este hospital-centrismo é ineficiente porque há uma grande afluência e o serviço entope em pouco tempo por coisas simples. A saúde são hospitais, auto-estradas e transportes. Os médicos dos centros de saúde têm de ter excelentes contactos com os hospitais e eles é que devem encaminhar ou internar o doente.

Como é possível ter bons serviços de saúde primários se não há médicos ou há médicos a trabalharem à hora?

O médico deve receber em função do que faz, dos doentes que atende. Isto acontece em França, onde o médico é convencionado, a pessoa vai ao médico que entende e este recebe do Estado em função dos doentes que atende.

As Unidades de Saúde Familiar vão um pouco nesse sentido, mas como é que vê que num edifício coexistam este modelo e o de centro de saúde, com organizações diferentes?

É mais um exemplo da desorganização e acaba por promover uma discriminação dos doentes. É também uma questão económica porque à partida nas Unidades de Saúde Familiar gasta-se mais uma vez que os médicos são premiados em função do trabalho.

Seria melhor instituir estas unidades em vez de serem de formação voluntária pelos profissionais?

Há sempre forças de bloqueio, há interesses, como na generalidade do país. As Unidades de Saúde Familiar (USF) são um bom caminho, têm de ser estimuladas e têm de ser modificadas em alguns aspectos. Está previsto um tipo de USF privada, do tipo do modelo francês, em que o médico recebe do Estado pelos serviços que presta. Mas nunca foi posto em prática por, quanto a mim, razões ideológicas.

O problema da saúde não é dinheiro mas desorganização e falta de incentivos

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